sexta-feira, 19 de abril de 2024

PARECE QUE FOI HÁ UM SÉCULO

 
Parece que foi há um século, mas foi anteontem. Andávamos todos embrulhados em arco-íris de esperança com quatro palavras na ponta da língua: vai ficar tudo bem. Parece que foi há um século, mas foi anteontem. Agora é o que se vê, estamos todos bem, o mundo é um caleidoscópio de explosões de alegria. Ou talvez não sejam de alegria. Este é um momento de reflexão, dizia-se. Já devíamos saber que sempre que certos homens se metem a reflectir, dá merda. E oportunistas para cavalgar a desesperança, surfando na merda, não faltam, com os bolsos cheios de mentiras e uma convicção tremenda nos gritos com que poluem o nosso direito à paz e ao sossego.

CADERNO DE APONTAMENTOS

 

Não se esqueçam, porque a história que vos vão impingir será outra:

1 de Abril de 2024

Israel bombardeia embaixada iraniana em Damasco, na Síria. Várias pessoas foram mortas, incluindo um comandante do Exército dos Guardas da Revolução Islâmica.

13 de Abril de 2024

Irão lança drones e mísseis contra Israel num ataque em “grande escala”. Israel diz que 99% dos mais de 300 drones e mísseis foram interceptados.

19 de Abril de 2024

EUA confirmam ataque israelita contra o Irão. De acordo com várias fontes, terão sido ouvidas “fortes explosões” na província de Isfahan, no centro do país, alegadamente correspondentes à intercepção de drones enviados pelos israelitas.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

MOVIMENTOS INORGÂNICOS

 
Os movimentos inorgânicos das força de segurança têm por detrás uma orgânica que toda a gente conhece, mas que ninguém quer confrontar. Mais uma vez, estamos perante um caso de fingir que não se vê, empurrar com a barriga, olhar para o lado. Esta democracia laxista e mole é mais inimiga de si mesmo do que os seus inimigos. Tanta lassidão vai permitir que os inimigos tomem conta do poder e depois, sempre depois da casa ter sido roubada, as virgens vão procurar quem lhes venda trancas para as portas com o discurso do costume: ah, como foi possível? O que fazer agora, já? Instaurar processos disciplinares, atacar nas redes toda e qualquer manifestação de discurso de ódio propagada por agentes da autoridade, limpar as polícias daquela escória.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

CASOS E CASINHOS

 
#1
 
Vem no Público:
Acusada de fraude em subsídio, ex-deputada desiste de ser adjunta das Finanças. Patrícia Dantas é arguida no megaprocesso da já extinta Associação Industrial do Minho, noticiou Correio da Manhã.
 
#2
 
A Patrícia Dantas segue-se Patrícia Cerdeira. Está mal de patrícias para os lados de Montenegro.
 
Vem no DN:
Nova baixa no Governo de Montenegro. Patrícia Cerdeira deixa de ser assessora da ministra da Justiça. Patrícia Cerdeira demitiu-se de assessora da ministra da Justiça devido a publicações nas redes sociais. (...) De acordo com o Correio da Manhã, a ex-jornalista da RTP, Patrícia Cerdeira, demitiu-se depois de ter sido confrontada pelo diário sobre as publicações que fez há alguns meses nas redes sociais, nas quais criticava o Ministério Público e a PJ e apoiava António Costa, ex-primeiro-ministro.

SOCIOLOGIA POLÍTICA

 

“Anarquismo de marca patrocinado pela União Europeia. Curto bués.”

Cipriano, já um bocado bêbado.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

JOSUÉ

 


É lamentável que não se fale de Josué como se fala de Moisés, o servo a quem Deus secou o Mar Vermelho para que o povo de Israel pudesse chegar à terra prometida. Josué foi quem guiou o povo depois de Moisés ter morrido, o seu livro é um livro de conquista territorial. Tem os condimentos das histórias de guerra, com espiões, prostitutas, traidores, cidades dizimadas, reis executados, cavalos amputados, etc. Tudo em nome do Senhor, que também a Josué separou as águas. Neste caso, as do rio Jordão. Pois que lhe coube ir conquistando terras para lá do Jordão, não poupando nada nem ninguém: «Destruíram tudo o que havia, matando à espada homens e mulheres, novos e velhos, e também os bois, as ovelhas e os jumentos» (Josué, 6, 21). Assim se conseguiram terras para satisfazer as tribos de Israel, doze. Conquistou-se Jericó, Ai, Jerusalém, Hebron, etc, etc, terras do sul, terras do norte, conquistas a ocidente do Jordão distribuídas em lotes pelas 12 tribos. Houve terras que ficaram por conquistar. Adivinhem quais. «Dos anaquistas não ficou ninguém no país de Israel. Só ficaram em Gaza, em Gat e Asdod» (Josué, 11, 22). Entre vários episódios curiosos no livro de Josué, o que mais me toca é esta noção clara de que a terra prometida foi conquistada a povos que já lá estavam antes. O discurso de despedida de Josué é elucidativo, podia intitular-se:

TERRA QUE NÃO VOS CUSTOU NENHUM TRABALHO E CIDADES QUE NÃO CONSTRUÍRAM

«Isto é o que o Senhor, Deus de Israel, tem para dizer: “Antigamente os vossos antepassados Tera e os seus filhos Abraão e Naor habitavam a oriente do rio Jordão e adoravam outros deuses. Eu fiz sair de lá o vosso antepassado Abraão, conduzi-o por toda a terra de Canaã e dei-lhe muitos descendentes. Dei-lhe o filho Isasc e a Isaac dei Jacob e Esaú. A Esaú dei em propriedade a montanha de Edom, enquanto Jacob e os seus filhos desceram para o Egipto. Mais tarde, enviei Moisés e Aarão e castiguei os egípcios daquela maneira, para fazer com que vocês saíssem de lá. Fiz sair os vossos antepassados e eles foram caminhando em direcção ao mar. Os egípcios perseguiram-nos com carros e cavalos até ao Mar Vermelho, mas os vossos antepassados gritaram por mim e eu pus uma grande escuridão entre eles e os egípcios e fiz com que o mar caísse sobre estes e os afogasse. Vocês bem sabem que foi isto que eu fiz no Egipto.
   Depois, vocês andaram muito tempo pelo deserto e eu fiz com que entrassem no território dos amorreus, no lado oriental do Jordão. Eles combateram contra vocês, mas eu entreguei-os nas vossas mãos e por isso vocês lhes conquistaram o território e os destruíram. Também o rei de Moab, que era Balac, filho de Sipor, foi combater Israel. Mandou chamar Balaão, filho de Beor, para vos amaldiçoar, mas eu não dei ouvidos ao que Balaão pretendia e ele teve que vos abençoar. Foi desta maneira que eu vos salvei.
   Depois, vocês passaram o rio Jordão e chegaram a Jericó cujos habitantes vos combateram tal como os amorreus, perizeus, cananeus, hititas, guirgaseus, heveus e jebuseus. Mas eu fiz com que vocês os vencessem. Espalhei o pânico à vossa frente e eles desapareceram. Não foi a vossa espada nem o vosso arco que os venceu, tal com o aos dois reis amorreus. Dei-vos uma terra que não vos custou nenhum trabalho e cidades que não construíram. É nessas cidades que vocês agora habitam comendo dos frutos das vinhas e dos olivais que não plantaram.
   Por tudo isso, sejam fiéis ao Senhor e sirvam-no com sinceridade e lealdade. Afastem-se dos deuses que os vossos pais adoraram na Mesopotâmia e no Egipto e adorem o Senhor.»

Assim ficamos a saber, entre outras coisas, que Deus tem filhos preferidos e lhes oferece de mão beijada o holocausto de terceiros. Entre os habitantes poupados à espada do Senhor não encontramos os filisteus, que andavam por Gaza. Vem no Antigo Testamento.

QUEM DISSE ISTO?

 
"Mais do que a imbecilidade, chateia-me a falta de humildade, aquele mínimo de humildade que todos devemos ao saber. Vivemos num tempo de facilitismos. Pessoas que não estudaram, não leram, não investigaram, sentem-se no direito de emitir opiniões sobre tudo e mais alguma coisa só porque ouviram uns comentários na televisão e viram uns vídeos na Internet. Enfim, que emitam opiniões não é problemático, problemático é ficarem convencidos de que essas opiniões valem o mesmo ou mais do que as considerações de quem estudou os assuntos. É isto que a falta de humildade faz, convence um imbecil de que não é imbecil."

domingo, 14 de abril de 2024

DIREITO DE RESPOSTA

 


Direito de Resposta
Selecção, prefácio e revisão de Ricardo Marques
Edição de João Pedro Azul
Flan de Tal, Abril de 2024

Álvaro Seiça, André Tecedeiro, Beatriz de Almeida Rodrigues, Catarina Nunes de Almeida, Catarina Santiago Costa, Ederval Fernandes, Fernanda Drummond, Filipa Leal, Francisca Camelo, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Dias, Inês Francisco Jacob, João Bosco da Silva, José Pedro Moreira, Mariana Varela, Miguel Cardoso, Miguel-Manso, Paola D'Agostino, Pedro Korres, Rafael Mantovani, Rafa (Rafaela Jacinto), Raquel Serejo Martins, Ricardo Marques, Ricardo Tiago Moura, Tatiana Faia.

Sacra Tragicomédia, pp. 64- 66.


KAFKIANA

 
O Irão atacou Israel. De manhã, passear a Nala.

sábado, 13 de abril de 2024

PLANETA



 
   A história é contada pelo epistemólogo austríaco Paul Feyrabend (1924-1994) num dos capítulos de “Adeus à Razão” (trad. Maria Georgina Segurado, Edições 70, 1991), dedicado à ideia de progresso na filosofia, nas ciências e nas artes:
 
«(...) Licomedes, discípulo de João, chamou secretamente um pintor a casa daquele e lhe pediu que pintasse um retrato de João. Este descobriu o retrato, mas, por nunca ter visto o seu próprio rosto, não o reconheceu e pensou tratar-se de um ídolo. Licomedes trouxe-lhe um espelho e João, comparando o espelho com o retrato, disse:
Tal como Nosso Senhor Jesus Cristo está vivo, este retrato é igual a mim; no entanto, meu filho, não é igual a mim mas apenas à minha imagem carnal. Pois, se este pintor que aqui imitou o meu rosto o quiser traçar num retrato, ver-se-á em apuros [precisando de mais do que] as cores, que agora vês e as tábuas… e a posição da minha forma e a velhice e a juventude e todas as coisas que se vêem com os olhos.
Mas tu, Licomedes, deverias tornar-te um bom pintor para mim. Tens as cores que ele te dá através de mim, ele, que pessoalmente nos pinta a todos, mesmo Jesus, que conhece as formas e o aspecto e as posturas e os tipos das nossas almas. Mas o que aqui fizeste é infantil e imperfeito: traçaste a semelhança perfeita dos mortos.»
 
   É curioso que um filósofo de inclinação anarquista, para quem a filosofia pode ser tratada como uma arte que trabalha com pensamentos, se sirva deste exemplo como sustentação dos limites do realismo óptico, o qual, nas palavras do próprio, exclui a vida e a alma. É um problema que se coloca também à poesia, o dos limites da representação de um objecto. Sucede que a poesia, enquanto arte da língua cujo material são as palavras, oferece-nos, ao contrário da ciência e até da filosofia, possibilidades de sentido que não estão dependentes do raciocínio lógico. Vem isto a propósito da leitura de dois livros recentes de José Ricardo Nunes (n. 1964), lançados em simultâneo pela não (edições): “Planeta” e “De Humani Corporis Fabrica”.
   Dedico-me ao primeiro, uma sequência de 48 poemas escritos entre 2018 e 2023. É uma característica deste Autor, a demarcação no tempo dos livros que vai publicando. À semelhança de “Andar a Par” (Tinta da China, 2015), também este oferece um conjunto de poemas numerados, sem título nem datação individual, o que permite supor um trabalho de montagem em benefício de uma organização com um sentido próprio que cabe ao leitor ir construindo do princípio ao fim. E do princípio ao fim apercebemo-nos como também neste volume a problematização do Eu é nuclear nesta poesia, um Eu complexo que se coloca como objecto de exploração, conhecimento, procedendo a essa impossibilidade epistemológica que é a de o sujeito ser ao mesmo tempo objecto, como que saindo de si, afastando-se e distanciando-se de si, para melhor se compreender. O espelho não basta, oferece-nos apenas a imagem carnal, a semelhança perfeita dos mortos.
   Do primeiro ao último poema damos com uma espécie de movimento de rotação da primeira pessoa do singular, o Eu gira, transita, movimenta-se, desloca-se no tempo e no espaço, é o centro a partir do qual os poemas se desenvolvem, na sua relação com o mundo, com os outros, por vezes dirigindo-se directamente a segundas pessoas, como no poema 34 — «E talvez hoje sejas tu / quem escreve este poema» (p. 72) —, noutras ocasiões num processo de desdobramento em terceiras pessoas que contribuem para um estilhaçamento da identidade. Nesse mesmo poema 34, o Eu ronda «como um planeta / vigia a sua estrela» (p. 71), mas já no primeiro poema do livro ele surge-nos «com a força de uma ilha vulcânica / que altera num instante a geografia do planeta, / não a sua essência» (p. 9). Por metonímia ou comparação, podemos fazer equivaler o Planeta ao Eu, ou talvez seja mais correcto falar antes de Ser. Este Ser que emerge como um Planeta em formação é dual na sua própria natureza, respeitando uma longa tradição filosófica e metafísica que o Autor não renega. Atentemo-nos à divisão estabelecida entre geografia e essência, podendo aqui estabelecer-se um equivalente entre corpo (o que muda, o que é contingente e está sujeito ao tempo) e alma (o imutável), divisão essa reforçada pela imagem fortíssima no poema 18 de uma alma que se ejecta do corpo para que o corpo assista à sua queda «tão leve / que nem precisa de pára-quedas» (p. 42).
   Talvez estejamos a avançar mais depressa do que a prudência aconselha. No início do livro encontramos um nome isolado, Paula, seguido de uma vírgula. O Autor dirige-se a alguém em concreto, a quem pretende dizer qualquer coisa. E aquilo que primeiramente diz é uma citação, um verso da IXª Olímpica de Píndaro (trad. António de Castro Caeiro, Abysmo, 2017): «O que vem com o nascimento é o mais poderoso que há.» O que vem com o nascimento é o inato, por oposição ao adquirido. Este verso, mais difícil do que aparenta, deve ser pensado sem 2500 anos de especulação filosófica e de investigação científica. Entre outros, as “Odes Olímpicas” tinham o propósito de tecer louvores aos vencedores, cantar feitos que jamais seriam alcançáveis sem que neles não existisse uma participação dos deuses. O inato está, portanto, ligado a essa ascendência divina do heroísmo. Sem deuses por detrás, não há glória nem heróis. Falava-se de Destino, não de Hereditariedade. Hoje em dia pensamos em Hereditariedade como naquele tempo, de certa forma, se pensava em Destino, se bem que o Destino fosse um agente exterior ao Ser.
   Neste “Planeta” o que vem com o nascimento é inerente ao corpo, um corpo que, descendendo de outros corpos, pode também ele gerar vida, «carne da minha carne», para citar Herberto citado por José Ricardo Nunes. Esta trajectória da ascendência para a descendência é algo que me parece central neste livro, desde logo nos vários poemas em que o Autor evoca as figuras do pai (06, 08, 11, 32, 35, 48), da mãe (08, 14), da irmã (09), da filha (09, 26, 32). Nestas evocações há, quanto a mim, um propósito que não é meramente afectivo, elas correspondem ao movimento rotacional do Ser Planeta cuja estrutura ontológica estes poemas procuram reflectir. A certa altura, sentimo-nos tentados a dividir o livro em blocos, porventura separados pelas fotografias de Pedro Bernardo distribuídas ao longo das páginas. Teríamos um bloco de poemas em que o Eu nos aparece mais isolado, entregue a si mesmo e às suas cogitações quotidianas; temos um outro bloco em que o Eu evoca os Outros Eu a que se liga por consanguinidade; e temos os poemas do Eu Outros, isto é, aqueles em que referências terceiras favorecem um enquadramento e uma localização do Planeta.
   Estes Eu Outros a que me refiro são, em regra, pioneiros da astronáutica (Konstantin Tsiolkovsky - 13), cosmonautas (Gherman Stepanovich Titov - 37), astronautas (Alan Shepard - 15, 16), aviadores (Robert Gregory), montanhistas (Edmund Hillary e Tenzing Norgay), alpinistas (George Mallory – 47), ou seja, gente que ascendeu e descendeu no espaço e no tempo, gente que subiu e desceu, gente que retirou os pés da terra para a poder observá-la com distanciamento e a ela desceu, por certo, com a experiência de um olhar renovado. Esta renovação, ou, se preferirem, ressurreição, está desde logo implícita no início do livro e percorre-o como uma espécie de marca de água: «Posso agora realmente acreditar / que sou mesmo feliz» (p. 98). Parece, portanto, ser esta a condição do sujeito poético, a de alguém que também se desloca no espaço e no tempo, se movimenta, transita, muda, transforma, dando a volta ao mundo por dentro da cabeça, como a certa altura se sugere no poema 22. Um poema exemplar, de resto, no modo como sobrepondo referências em três estrofes — a banda rock Return to Forever, “A Balada do Amor e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke”, de Rainer Maria Rilke, e o poeta e dramaturgo Robert Browning — procede a uma trasladação do Outro para o Eu: «Dez pisos me afastam agora de mim, / em luta com raízes» (p. 50).
    As múltiplas referências que encontramos neste livro, os lugares visitados, os filmes vistos, a música escutada, os livros lidos, acompanham o Ser na sua jornada, mas não o condicionam tanto quanto as raízes. As raízes são o que vem com o nascimento e o que vem com o nascimento é o mais poderoso que há. Vislumbramos referências às raízes nos poemas 09: «Pareço o pêndulo que estava na sala / mas agora arrítmico, / sem coordenação motora, raízes / arteriais, não cuidando / que tudo inapelavelmente se torna / pasta de papel» (pp. 26-27). Reaparecem no poema 12: «Associo a primeira vez que morri / às raízes expostas de uma oliveira» (p. 32). Voltam a surgir no poema 28: «E já / o peito do meu pé ia ao encontro / do teu calcanhar, como no poema do Thom Gunn que o Helder traduziu / e publicou no facebook e tão bem calha / para eu não desatar a falar de raízes» (p. 61). E, por fim, estão no poema 48, o último do livro: «Tantas oliveiras arrancadas / que deixaram à beira do caminho / com as raízes viradas para cima» (p. 98). Não poderão estes poemas ser como essas oliveiras arrancadas à terra, com as raízes viradas para cima de modo a tornar visível o que de mais poderoso há?
   O que mais me agrada neste livro é a sensação de movimento que me oferece, este movimento para cima e para baixo, para trás e para a frente, sugestivamente erótico, mesmo quando sabemos não estar senão dentro da cabeça do sujeito poético que, através da poesia, ousa retratar-se para lá da carne. O movimento impresso pelas palavras, esse ritmo, se preferirem, é o que me cativa mais. A ter de fazer-lhe uma crítica, seria a de que esta concepção dual do Ser me aprece ultrapassada. Nos poemas do livro “De Humani Corporis Fabrica” está em síntese tudo quanto nos resta: corpo, um corpo frágil, débil, precário, sujeito à transformação como o Planeta está sujeito às alterações climáticas. Fico, por isso, como a mulher sentada à porta de um café que olha para um ponto que ninguém é capaz de fixar. 
   É uma imagem que se repete no início e no fim de “Planeta”. No poema 06, mais descritivo, não se fala em ponto indefinido como se refere no poema 48. É um ponto que ninguém jamais foi capaz de fixar, isso a que no último poema se chama um ponto indefinido. Creio poder este ponto ser o vazio para que tudo tende, inclusive o olhar. «A Terra é um pequeno ponto no espaço», diz-se no poema 13. Também o Ser é um pequeno ponto no tempo que ninguém consegue definir. O que neste, como noutros livros de José Ricardo Nunes, se coloca em causa é precisamente esta noção de indefinibilidade do Ser. O Ser é um pequeníssimo ponto perdido no tempo e no espaço, no meio de uma multidão que não o alcança, mesmo que com ele se cruze e o condicione. Esta é uma hipótese, a de que entre nós e os grãos de café reduzidos a pó todas as manhãs não exista grande diferença.
 

sexta-feira, 12 de abril de 2024

O IMPROMPTU DE VERSALHES

 


O que eu não teria dado para ver isto representado no Théâtre du Palais-Royal, lá pelos idos de 1663. Molière a fazer de Molière. A peça, "O Impromptu de Versalhes", tinha como motivo principal atacar os críticos do estilo de Molière, servindo-se o próprio de um estratagema simples mas eficaz: pôs-se em cena, com a sua trupe, a dirigir um espectáculo que é um ensaio de uma peça em que os rivais saem caricaturados. A propósito de famílias, este diálogo de Molière, ele mesmo, com a sua mulher em cena e na vida real, a actriz Armande Béjart:

MOLIÈRE: Calai-vos, minha mulher, sois uma besta.
MLLE MOLIÈRE: Muitíssimo obrigado, senhor meu marido. É mesmo assim: o casamento muda as pessoas e não me teríeis dito tal coisa há dezoito meses atrás.
MOLIÈRE: Calai-vos, peço-vos.
MLLE MOLIÈRE: É estranho que uma pequena cerimónia seja capaz de nos privar de todas as nossas belas qualidades, e que um marido e um galã olhem para a mesma pessoa com olhos tão diferentes.
MOLIÈRE: Tanto discurso!
MLLE MOLIÈRE: Por mim, juro que se fizesse uma comédia fá-la-ia sobre este tema. Justificaria as mulheres de muitas das coisas de que as acusam; e faria temer aos maridos a diferença que vai das suas maneiras bruscas às civilidades dos galãs.
MOLIÈRE: Aiii! Deixemos isso, agora. Não há tempo para conversas: temos mais que fazer.

Molière, in "O Impromptu de Versalhes", trad. João Paulo Esteves da Silva, TNDM II & Bicho-do-Mato, 2016, pp. 11-12.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

O DOENTE IMAGINÁRIO

 


A discussão sobre medicina entre Argão, “O Doente Imaginário”, e Beraldo, seu irmão, é muito interessante, até pelo modo como Molière se mete lá pelo meio ironizando as críticas de que era alvo à época, mas eu gosto mesmo é deste breve trecho em que Argão revela à sua segunda mulher a intenção de fazer um testamento. Os comentários de Belina são um tratado acerca do amor nas boas famílias:

ARGÃO: É preciso fazer o meu testamento da forma que o Senhor Boafé sugere, amorzinho, mas, por precaução, quero pôr nas vossas mãos vinte mil francos em ouro, que estão nos lambris da minha alcova, e duas letras ao portador, uma do Senhor Damão e outra do Senhor Geronte.
BELINA: Não, não, não quero nada disso. Ah! Quanto dizeis que há na vossa alcova?
ARGÃO: Vinte mil francos, amorzinho.
BELINA: Não me faleis mais de dinheiro, peço-vos. Ah! De quanto são as duas letras?
ARGÃO: Uma de quatro mil francos e outra de seis, minha doçura.
BELINA: A riqueza toda do mundo nada é para mim comparada connosco, doçura minha.

Molière, in “O Doente Imaginário”, tradução de Alexandra Moreira da Silva, Húmus, Novembro de 2014, p. 56.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


"De Má Condição" (2024) é o segundo volume da Colecção Insónia, inaugurada com "A Dança das Feridas" (2011). Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João Lopes Fernandes - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição. Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por messenger ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design é do Pedro Serpa . Alguns exemplares já chegaram ao seu destino. A Maria João colocou alguns nas livrarias Poesia Incompleta, Snob ( https://www.livrariasnob.pt/product/de-ma-condicao ) e Tigre de Papel.

VEM NO PÚBLICO

António de Spínola, o primeiro Presidente da República depois do 25 de Abril, foi condecorado com o Grande Colar da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República a 5 de Julho passado. A questão é que a condecoração póstuma do autor do “Portugal e o Futuro” foi feita na “clandestinidade”, não tendo a Presidência dado qualquer notícia do facto. (...) A opção de condecorar Spínola de forma a que fosse quase impossível alguém saber (é preciso investigar na página das Ordens Honoríficas Portuguesas para conseguir obter a informação sobre as condecorações) pode ser interpretada como uma forma de o Presidente evitar uma polémica pública. Na sequência da notícia do PÚBLICO, em 2022, de que o Presidente tencionava condecorar todos os membros da Junta de Salvação Nacional, várias personalidades fizeram uma carta aberta em que defenderam que a condecoração de Spínola com a Ordem da Liberdade representaria “uma afronta”. Assinavam a carta Fernando Rosas, historiador e fundador do Bloco de Esquerda, Carlos Brito, ex-líder parlamentar do PCP, o jurista Domingos Lopes, o historiador Manuel Loff, a professora aposentada Maria do Rosário Gama, o fundador do Bloco de Esquerda Francisco Louçã, entre muitos outros. A carta referia, nomeadamente, a criação por Spínola do movimento político MDLP (Movimento Democrático pela Libertação de Portugal, uma organização terrorista de extrema-direita a que pertenceram o actual vice-presidente da Assembleia da República Diogo Pacheco de Amorim e o comentador e advogado José Miguel Júdice).

E é isto o que temos, 50 anos depois do 25A. O presidente dos afectos revela-se no seu máximo esplendor. Como se não bastasse relativizar o número de vítimas de pedofilia na Igreja, andar com a padralhada ao colo, meter cunhas pelo filho, menosprezar a escravatura no Qatar porque o que importa é a selecção, mandar bocas foleiras sobre excesso de peso e decotes, etc, etc, etc, ainda condecora fachos pela calada. Esta merda não se inventa, este país é pior do que uma anedota. É mesmo uma fantochada com bonecos avariados.

PLUG

 

"O fascínio que as pessoas sentem pelos plugs anais da Vasconcelos é algo que me ultrapassa."

Quitéria, no Maat.

terça-feira, 9 de abril de 2024

EUGÉNIO LISBOA (1930-2024)

 


(aqui)

FAMÍLIA E IDENTIDADE

 
Podiam juntar-se para reflectir sobre violência doméstica, podiam juntar-se para falar de crianças vítimas de maus-tratos, podiam juntar-se para debater a pedofilia na Igreja Católica Apostólica Romana. Enfim, podiam reflectir, cogitar, pensar sobre muita matéria urgente. Não, perdem tempo a regurgitar sobre divórcio, casamento entre pessoas do mesmo sexo, família natural ou o que raio isso possa ser e outros anacronismos congéneres. E há portugueses que votam nesta gente, nestes saudosistas do medievalismo mental. Votam, vão à missa aos domingos, encornam-se no resto da semana, são hipócritas a vida inteira. Tenho conhecido tanta grunhice desta que até dói, gente que está sempre disponível para impor e exigir aos outros o que não pratica na própria casa. Mas neste caso em concreto a brigada do patriacado mofento e reumático até tem a sua piada, andam sempre com a boca cheia de Sá Carneiro. Um rapaz, como sabemos, muito tradicional, que nem sonhou com quadros analíticos da corneação, fiel marido de reverentes mulheres. Infelizmente, a hipocrisia não mata como o cancro. Se matasse, aquela gente já tinha sido comida pelo bicho.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

CAVERNA

 


Foram concebidos no fundo de uma caverna, foram dados às sombras na caverna, receberam educação cavernícola, cresceram na caverna, formaram-se na caverna, vivem na caverna. Tudo certo. O pior é pretenderem arrastar os outros para a caverna de onde nunca saíram. Esta gente é o cancro de um país que, da sua fundação até hoje, nunca conseguiu separar as águas da política dos fumos da religião.

domingo, 7 de abril de 2024

PROFISSÃO INFAME

 

   Molière é o nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, nascido em Paris no ano de 1622. Filho de um estofador com o cargo de “valet de chambre” e tapeceiro do rei Luís XIV, ficou órfão de mãe com apenas dez anos de idade. Conta-se que desde cedo ganhou familiaridade com o teatro, levado pela mão do avô a ver os grandes comediantes italianos e os trágicos da época no Teatro de Bourgogne. Em 1633, entrou no curso de Humanidades do Collège de Clermont, uma prestigiada escola de jesuítas frequentada pela nobreza e pela alta burguesia. Aí completou a sua formação em 1639, adquirindo posteriormente do pai o título de Tapissier du Roi. Isto permitiu-lhe ter contacto com o elegante Rei Sol de França, numa época de intensa criatividade teatral. Frequenta o ambiente teatral travando conhecimento com Tiberio Fiorilli, dito Scaramouche, actor italiano de commedia dell’arte. Conhece também uma jovem actriz, Madeleine Béjart, de quem se torna amante e com quem constituirá a sua primeira trupe, o Illustre Théâtre, depois de renunciar formalmente à herança do cargo do pai.
   Estávamos em 1643, a trupe actua na província, apresenta-se em Paris, Poquelin torna-se autor, actor, director e administrador da companhia que, em 1645, entra na bancarrota. É a partir desta altura que muda o nome para Molière, após algumas semanas de prisão por causa de dívidas. Libertado com a ajuda do pai, partiu em turnê pelo interior de França como comediante itinerante. Foram cerca de 14 anos encenando adaptações de farsas italianas. A companhia fica conhecida como Troupe de Monsieur de Prince de Conti, referência ao mais eminente dos seus mecenas e protectores: o Príncipe de Conti, governador do Languedoc. Regressa a Paris em 1658, apresentando no Louvre a tragédia “Nicomède” de Corneille e a farsa “Le docteur amoureux”. O sucesso da segunda abre-lhe as portas do teatro Petit-Bourbon, que repartirá com a companhia italiana de Scaramouche.
   A companhia de Molière passa a ser conhecida como Troupe de Monsieur, sendo Monsieur o irmão do rei Luís XIV. A 18 de Novembro de 1659 estreia “Les Précieuses ridicules”, primeira incursão na crítica aos modos afectados da época. A peça alcança enorme sucesso e inspira polémica, chegando a ser inicialmente proibida. Seguiu-se “Sganarelle ou le Cocu imaginaire” (1660), tributo à commedia dell’arte e ao mestre com quem Molière partilhava a sala do Petit-Bourbon. A hipocrisia, a falsidade nas relações humanas, o adultério, a traição, o ciúme, a intriga palaciana, o arrivismo, são temas nas peças de Molière que vão alimentar várias inimizades, muitas querelas, inveja e rivalidade. “L’École des maris” (1661) e “L’École des femmes” (1662), já no Théâtre du Palais-Royal, instigaram ainda mais as intrigas e os libelos.
   Molière, entretanto, casara com a actriz Armande Béjart, vinte e três anos mais nova, julgando tratar-se de uma irmã de Madeleine Béjart. Ao que consta, seria filha. O facto foi aproveitado pelos rivais para o criticarem, aumentando o número de inimigos. Diziam que havia casado com uma filha. Valeu-lhe o rei, de quem havia recebido uma inusitada pensão, e cujo apoio se manifestou publicamente ao aceitar ser padrinho do primogénito do dramaturgo. “Tartuffe” (1664), encenado em Versalhes, multiplicou as calúnias, tornando-se no maior escândalo da carreira artística de Moliére. O clero, sentindo-se atingido, tomou posição conseguindo a proibição da peça. Seguiu-se “D. Juan” (1665), baseada numa peça de Tirso de Molina, igualmente interdita de imediato.
   Da amizade com o compositor italiano Jean-Baptiste Lully surgiram “Le Mariage force” (1664) e “L’Amour médecin” (1665). Também com música de Lully, “George Dandin ou le Mari confondu” (1668), foi mostrada pela primeira vez no Palácio de Versalhes durante Le Grand divertissement royal. Tanto “Le Misanthrope” (1666) como “Goegre Dandin” terão sido peças pouco apreciadas no seu tempo, ao contrário de outras comédias que deixavam perceber nas entrelinhas ataques pessoais e crítica de costumes. A última colaboração com Lully foi o ballet trágico “Psyché” (1671), escrito com a ajuda de Thomas Corneille, irmão de Pierre. Nesse mesmo ano morreu Madeleine Béjart, perda que terá contribuído para agravar o estado de saúde de Molière, propenso à melancolia.
   “Le malade imaginaire” (1673) foi o seu trabalho derradeiro, acabando por tombar em palco, no papel principal, o de doente, em estado de profunda fadiga. Acabou por falecer algumas horas depois em casa. Diz Rubem Fonseca: «Molière morreu às dez horas da noite do dia 17 de Fevereiro de 1673, uma sexta-feira, um mês antes de completar cinquenta e dois anos. / Os comediantes, por exercerem uma profissão considerada infame, são excomungados. Conforme as decisões da Prelazia de Paris, não se pode dar comunhão a pessoas publicamente indignas e manifestamente ignóbeis como as prostitutas, os usurários, os feiticeiros e os comediantes. (Por algum motivo misterioso, os cantores de ópera não sofrem estas restrições.) A todos esses réprobos são negados a extrema-unção e o sepultamento eclesiástico, mas os comediantes podem obtê-los caso se retratem dos seus erros e prometam, de maneira solene e veraz, renegar a sua abjecta profissão. / Molière não havia feito essa renúncia e não podia ser sepultado em cerimónia cristã. Os adversários do teatro, notadamente todos aqueles que execravam o autor de Tartufo e D. Juan e haviam conseguido a interdição das suas peças, exigiam que se impedisse a realização da cerimónia. (…) O certo é que o rei gostava de Molière, tanto que aceitara ser padrinho do seu filho Louis, que morreu com poucos meses de idade. Certamente foi para agradar ao rei que o arcebispo de Paris, mesmo tendo revogado a comunhão realizada pelo abade Bernard, permitiu, afinal, que o comediante fosse enterrado no cemitério de St. Joseph, na parte reservada aos suicidas e crianças pagãs, sob a condição de que isso fosse à noite, sem nenhuma pompa, com a presença de apenas dois padres. / Às nove horas da noite, Molière foi enterrado. Ficara insepulto três dias. La Fontaine, Mignard e Boileau, entre outros amigos dele, estavam presentes (…)».

Rubem Fonseca, in O Doente Molière, Sextante Editora, Abril de 2020.

sábado, 6 de abril de 2024

QUADRO ANALÍTICO DA CORNEAÇÃO

 


 

N.º 1. CORNUDO PRÉVIO, ou ANTECIPADO, é aquele cuja mulher teve amores antes do sacramento e não leva aos esposo a virgindade. «Sê-lo apenas prévio é coisa que lhe não pesa», afirma Molière. Nota: Não são considerados prévios os que souberam de tais amores pretéritos e, apesar deles, acharam por bem casar-se; ou se juntaram a viúvas; ou, sabendo de anteriores galanterias, a elas se acomodaram.
 
N.º 3. CORNUDO IMAGINÁRIO é o que o não sendo, ainda, já se desola acreditando sê-lo. Como o PRESUNTIVO (n.º 2), sofre de mal imaginário antes do real. [Molière retratou-o numa das suas peças, “Sganarelle ou le cocu imaginaire”.
 
N.º 36.CORNUDO APÓSTATA, ou TRANSFUGA, é o que tendo sido um modelo de razão, reconhecendo e publicitando que no casamento tudo são cornos, prevenindo os outros contra a armadilha conjugal, acaba em ceder-lhe de cabeça baixa e sofrer todas as fraquezas que anteriormente assinalava e denunciava. É um apóstata do bom senso e trânsfuga obstinado. Também assim Molière, que tanto esclareceu e tirou ilusões à confraria para acabar, ele próprio, enrolado da maneira mais estúpida e alvo dos ridículos que soubera pôr em cena.
 
N.º 46. CORNUDO PROPRIAMENTE DITO, ou DESESPERADO, é o George Dandin de Molière. A este inflige a sua mulher todas as atribulações imaginárias enganado-o, arruinando-o, maltratando-o, ultrajando-o, fazendo-o encontrar no casamento a forma de ir direito ao céu depois de transformar este mundo em purgatório.
 
N.º 52. CORNUDO PEDAGOGO, ou PRECEPTOR, é o que Molière pintou nas duas peças de teatro “A Escola das Mulheres” e “A Escola dos Maridos”, um esquinanto responsável pela formação do novo rebento. Mas certo é Agnés, destinada a partilhar do seu leito, encontrar outro homem capaz de ministrar-lhe lições a que dará melhores ouvidos. Na espécie existem muitos filósofos habituados a cortejar as mães para casar com as filhas incorruptíveis, na sua opinião, já que as formaram eles próprios pelo método das percepções de intuição de sensação. O pior é quando surge o portador de uma teoria de sensações menos sabiamente analisadas, concordemos, mas ainda assim mais inteligíveis pelo belo sexo!
 
Charles Fourier, in “Quadro Analítico da Corneação”, trad. Aníbal Fernandes, colecção contramargem, & etc, Janeiro de 1980; “Dos cornudos: suas espécies e tipos”, trad. Helder Guégués, Cavalo de Ferro, Maio de 2004.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

EXISTENCIALISTAS A SÉRIO

Águeda, 22 de Dezembro de 1948 - Um grupo de ciganos a quem Sartre deveria dar carta de alforria na sua doutrina. Estes, sim, é que são existencialistas verdadeiros, desde a guedelha e a barba por fazer, ao porco desenterrado e comido!
Miguel Torga, Diário IV.

TENÇAS

 

"Lista de pensões dadas pelo Rei em 1663 aos poetas e cientistas franceses; relatório de COLBERT: "O Rei mandou as somas que tinha destinado: ao Sr. P. Corneille, primeiro poeta dramático do mundo, 2000 libras; (...) ao Sr. Molière, excelente poeta cómico, 1000 libras; (...) ao Sr. Racine, poeta francês, 800 libras; ao Sr. Chapelain, o maior poeta francês de sempre, e do mais reconhecido talento, 3000..."

Voltaire

PORTE-CHAISE D’AFFAIRES

 


 
   Título, grau, posição, posto — o sonho e cobiça de todos os cortesãos! Estar um posto à frente de alguém, estar a menos um passo do ídolo do píncaro… ainda que o trono não fosse a poltrona dourada do cerimonial, mas uma peça de mobiliário muito mais prosaica, com um orifício no meio, onde qualquer Sua Majestade se irmanava aos mais simples mortais.
   Embora com o risco de nos considerarem um tanto escatológicos, somos obrigados a dedicar algum espaço ao protocolo e à mística desse utensílio caseiro. Franciso I, rei de França, criara já o posto de porta-retrete (porte-chaise d’affaires). Os respectivos titulares desempenhavam o seu cargo envergando uniformes propositadamente desenhados para tal fim e usando medalhas e espadas. As tarefas inerentes à retrete eram das mais cobiçadas na Corte, pois se os resultados das funções aí satisfeitas fossem lisonjeiros, Sua Majestade mostrava-se extremamente generoso em dispensar favores. Em tempos mais recuados, tal espectáculo era o mais público possível. Porém, Luís XIV, com elevado tacto e delicadeza, restringiu essa publicidade, decidindo que tão íntima função não se prestava a realizar no meio de grandes multidões. Sempre que utilizava o prosaico trono, bania fosse quem fosse da sua presença, durante breve meia hora, com excepção dos príncipes ou princesas de sangue, da Senhora de Maintenon, dos ministros e do chefe dos dignitários da corte — ao todo, pouco menos de meia centena de afortunadas pessoas.
   A chamada chaise percée —cadeira furada — merecia o respeito que lhe dispensavam, pois era construída com pompa e luxo adequados. Catarina de Médicis possuía duas: uma coberta de veludo azul, e outra de veludo vermelho. Depois da morte do marido encomendou uma terceira; mandou-a forrar de veludo negro, em sinal de luto, o que bem testemunha as profundidades a que descia o desgosto da real viúva.
   Quando Fernando IV, rei de Nápoles, ia ao teatro, a importante peça de mobiliário seguia-o, levada por um destacamento da Guarda Real, comandado por um coronel. Podia gozar-se o interessante espectáculo, sempre que o rei decidia assistir a uma representação: uma força de guardas, em uniforme de gala e empunhando archotes, marchava do palácio para o teatro escoltando o augusto trono privado. Por onde quer que passasse, os soldados faziam-lhe continência e os oficiais perfilavam-se, de espada desembainhada.
 
Paul Tabori, in “História Natural da Estupidez”, trad. Fernando de Morais, Book Builders, Março de 2017, pp. 104-105.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

SÍMBOLOS NACIONAIS

 
"Eu quero que o escudo e as quinas e a esfera armilar se fodam."

Cipriano

QUEM ESCREVEU ISTO?

 
"Isto é um país de experts que, lamentavelmente, se exprimem num português sofrível, não sabem interpretar um texto, passam a vida a atentar contra a língua portuguesa nas redes sociais e não lêem livros. Génios que dizem prontos, a gente semos e coisas afins. Mas pior do que a ausência de qualidades, que já Almada Negreiros apontava, é a total falta de humildade no reconhecimento das próprias limitações. Não há ignorância mais desastrosa do que aquela que se fundamenta num défice de autocrítica."