quinta-feira, 30 de novembro de 2017

VERTEM-SE BÍBLIAS EM QUIMBUNDO

Os livros da Mia Soave juntam o melhor de dois mundos: poesia e música. Fazem-no com incontestável singularidade, anexando ao livro um CD de bónus. Um objecto não copia o outro, antes se complementam através de pontes nem sempre óbvias. Em Vertem-se Bíblias em Quimbundo (Mia Soave, Abril de 2017) a ponte é claramente inteligível pela condição do autor. João Paulo Esteves da Silva (n. 1961) é músico profissional. No CD intitulado Crime musicou versos seus, mas também do poeta brasileiro Augusto dos Anjos, de Guillaume Apollinaire, de Mordechai Geldman, que traduziu para a Douda Correria em dois volumes bastante aconselháveis, e de Miguel Martins. Numa música suportada em composições para piano, fez-se acompanhar da voz de Nazaré Silva e da bateria de Samuel Dias. Do ritmo de cariz tradicional que acompanha o poema de Augusto dos Anjos à belíssima balada para Le Pont Mirabeau, de Apollinaire, passando por improvisos e diálogos vocais sofisticados onde a vertente jazzística se afirma de um modo consistente, o crime deste CD resulta do convite que a determinada altura nos faz: «Anda mergulhar / na felicidade / uma última vez / sai da realidade / de vez». Esta fuga da realidade, a que corresponde um mergulho na felicidade, está de acordo com o movimento vislumbrado nos verso largos de Vertem-se Bíblias em Quimbundo
   Apesar de ser Descartes o citado, é de Blaise Pascal que nos lembramos quando, conjecturando sobre os vícios e as virtudes da imaginação, este nos diz que: «A imaginação dispõe de tudo. Ela faz a beleza, a justiça e a felicidade, que é tudo no mundo». João Paulo Esteves da Silva também se apoia na imaginação em busca de uma música que reflicta a beleza vibrante do mundo. Logo no primeiro poema, o sujeito poético fecha os olhos e continua a imaginar, imagina «peixes evoluindo para pombos», imagina que atravessa paredes e, ao imaginar, como que se distancia da chuva miudinha que cai lá fora, isto é, que cai na realidade: «o contrário da minha imaginação estúpida». Neste acto de imaginar pressentimos aquilo a que podemos chamar uma deslocação para fora do mundo, numa demanda aparentemente solitária, consciente dessa aparência, daquilo que se oponha à bruta realidade dos dias: «E não é que me desinteresse da política, interessa-me até, mas caí no poço da merda / Tenho pouca vontade de fazer ondas, bóio suavemente, habituo-me ao cheiro»
   Em versos longos, vertiginosos, a escrita de João Paulo Esteves da Silva neste livro mostra-se fragmentária. Os poemas são como que apontamentos diarísticos onde se misturam retratos e memórias, confissões, sensações, vislumbres, num espaço concreto, o de Lisboa, e num tempo identificável, dos últimos meses de um ano ao início do outro. Inconclusiva nas abstracções a que se propõe, é uma poesia marcadamente cinematográfica. O sujeito poético fotografa a realidade para a ver de mais perto, como se a olho nu um nevoeiro se interpusesse entre o objecto e a percepção. A dimensão mais atractiva que aqui encontramos é, contudo, a da relação estabelecida entre o olho e o ouvido, dois órgãos onde a percepção se desdobra em imagem e som: «Se se ouvir com os olhos, a música do sítio aparece / Quase sempre lamentosa, dorida, solitária mas também, às vezes, no inverno // Assim, radiosa, esperançosa e sem se ver, mesmo música». Especialmente interessante num poeta cuja relação com o universo musical é fortíssima, esta espécie de inversão na faculdade dos sentidos sublinha o caos do mundo. Num outro poema «Há uma altura em que as imagens deitam cheiros». 
   Ouvir com os olhos, ver o ruído, cheirar as imagens, apontá-lo, é uma outra forma de estar atento. No CD, damos com um exercício, intitulado No Café, elaborado a partir de falas comuns, palavras escutadas ocasionalmente, que denota essa mesma atenção subvertida pela confusão dos sentidos. A este propósito, «Lembro a história, contada por Lévy Strauss, da mulher devorada pelos parentes / Por ter confundido os sentidos, o próprio com o figurado, ou vice-versa, no caso». Mais uma vez, ocorrem-nos pensamentos de Pascal: «Dois erros: 1.º tomar tudo literalmente; 2.º tomar tudo espiritualmente». Esta poesia abre, precisamente, o campo à espiritualidade, desde logo, por não manter uma relação literal com a realidade. Neste caso, o poeta é ainda aquele que consegue descobrir buracos azuis entre as nuvens. Tal descoberta não seria possível sem a deslocação, sem o afastamento ou, se preferirem, sem o exercício de abstracção aqui proposto. Ao pormenor, toda a panorâmica adquire novos sentidos, estimulantes significações. E o conselho de Pascal nem é mau de todo, apesar de sabermos quanto da condição humana se resume a tédio e inquietação.

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