sexta-feira, 7 de julho de 2017

ODES OLÍMPICAS

Acessíveis na tradução de Frederico Lourenço incluída em Poesia grega de Álcman a Teócrito (Livros Cotovia, Maio de 2006), as Odes Olímpicas, de Píndaro (n. 518 a.C. – m. 438 a.C.?), conhecem agora uma edição autónoma com tradução de António de Castro Caeiro. O propósito é clarificado na apresentação: «dar Píndaro a ler, da forma mais directa possível, ao leitor de português» (p. 5). Conquanto tenha esse mérito, esta edição da Abysmo (Abril de 2017) carece de um enquadramento histórico que permita ao leitor português compreender as particularidades dos hinos pindáricos. Se Lourenço havia alertado para a extrema importância de Píndaro, considerando-o «o poeta mais interessante de toda a literatura grega», e Caeiro lhe reforça o epíteto de “pensador-poeta”, sublinhando no posfácio as características filosóficas de uma poesia empenhada na reflexão da condição humana, continua a faltar uma contextualização que encontramos, por exemplo, na síntese de Werner Jaeger: «A poesia de Píndaro é arcaica». O adjectivo nada carrega de depreciativo, obrigando-nos, no entanto, a pensar estes poemas para lá da sua evidente exaltação de um ideal humano de perfeição. O louvor aos vencedores não se fica aqui pela circunstância das festividades, abraçando a fama e a glória como um fim último da competição. Pelo contrário, em causa está um ideal helénico de nobreza que transcende o circunstancial, um ideal que busca elevar a natureza mortal ao modelo dos deuses. A poesia de Píndaro é arcaica por afirmar este ideal religioso (união do físico ao espiritual) num tempo em que a poesia conhecia já as suas formas de expressão individual, sendo a sua maior força a semente idealista que Platão regará tendo em vista o supremo bem. Portanto, mais do que expressão lírica subjectiva, as odes pindáricas expõem um ideal de nobreza aristocrática que, à época em que o poeta viveu, se encontrava em franca decadência face ao desenvolvimento da cultura sofística. Eis o problema na sua mais simples formulação: a virtude é inata, reside no sangue, ou pode ser ensinada? Duas dimensões, não isentas de polémica, matizam o pensamento de Píndaro quanto a esta matéria. A primeira, por de mais evidente, é a da constante supressão do feito heróico, isto é, do objecto da ode, pela narração de um mito cuja associação ao vencedor raramente é perceptível. Talvez a associação mais plausível seja a de fazer ligar as virtudes por detrás da vitória a uma herança proveniente de tempos ancestrais, algo que nos permite extrapolar o conceito moderno de “super-homem” à luz do ideal humano enaltecido por Píndaro. Esta explicação ganha força tanto quanto a noção de herança adquire neste contexto contornos que diríamos hoje eugénicos, em versos onde o inato conhece sempre uma força que não é reconhecida ao adquirido: «O que vem com o nascimento é o mais poderoso que há. / Mas muitos homens procuram obter a glória / com excelências que são aprendidas». (p. 42). A raça, o sangue, é uma noção fulcral na ideia pindárica do homem nobre (aquele em cujas veias corre sangue sagrado), pelo que não devemos estranhar as constantes alusões aos antepassados e à estirpe dos heróis glorificados nestas odes. Uma outra dimensão, porém, complica-nos as contas. Por mais forte que seja, por mais super que se nos apresente, o homem cantado por Píndaro é sempre perecível. O bom sangue e a casta divina do herói não o resgatam da condição de mortal. O deus Tempo, «o único deus que põe à prova a verdade / tal como ela efectivamente é» (p. 44), não relativiza o destino nem a descendência ao fazer do homem fruto do acaso, mas de algum modo fragiliza a sua condição existencial. A vida consagrada a um propósito nobre é, deste modo, a resposta humana possível a tamanha fragilização. Tal como o antepassado surge aos nossos olhos com a força do exemplo, assim devemos nós hoje empenhar-nos para sermos exemplo no futuro. Uma ética deste tipo não podia deixar de colocar o poeta, como Platão fará com o filósofo, no lugar de detentor de um saber ao alcance de poucos. Daí que faça sentido sublinhar o lado esotérico destas Odes, até pelo que os próprios versos inferem: «Tenho muitas setas rápidas na aljava / debaixo do meu braço que falam para quem compreende: / mas para as pessoas comuns são necessários intérpretes. / Sábio é quem conhece as coisas naturalmente. / Mas os que aprenderam a ser tagarelas, / semelhantes a corvos, proferem sons // vãos contra a ave divina de Zeus» (p. 20). O que torna as Odes Olímpicas especiais é terem elas sido escritas contra o seu tempo, chegando-nos hoje como exemplo de um ideal humano que não deixa de ser admirável por nos merecer as maiores dúvidas.

2 comentários:

Guiomar Lobo disse...

Muito interessante.
Nunca tinha visto o problema literário/ético abordado deste modo no que respeita às odes em questão e ao seu autor.
Obrigado pela reflexão que me fez experimentar ao lê-lo.

hmbf disse...

Eu é que agradeço, pelo comentário.