sábado, 25 de fevereiro de 2017

EUROPA 39

Os textos de Bertolt Brecht recentemente recuperados pelo encenador Luís Varela para o Teatro da Rainha foram escritos em cima dos acontecimentos que procuram representar, tornando-se com o tempo exemplos paradigmáticos da arte enquanto testemunho. Não são, porém, textos datados. Tanto Dansen como Quanto Custa o Ferro?, parábolas engendradas por volta de 1939, as mais conhecidas dos textos acoplados em Europa 39, reflectem situações concretas que facilmente identificamos com o clima político vivido às portas da II Grande Guerra, mas transpõem as fronteiras da História ao exercerem sobre o público a sua função primordial de despertar consciências. 
Numa época avessa ao espírito crítico, é especialmente gratificante constatar esta obstinada conduta de quem procura conciliar, com inteligência, entretenimento e agitação do pensamento. É óbvio que no teatro de Brecht havia tanto de preocupações ideológicas como pedagógicas, ambas respeitadas no espectáculo agora em cena desde logo na montagem dos textos, a qual logra estabelecer uma ligação de coerência entre as diferentes circunstâncias narrativas, anulando desse modo eventuais descontinuidades entre as peças encenadas. Mas a par de tais preocupações vislumbramos também uma dimensão paródica que reforça o desejo de provocar emoções no espectador. 
Tomemos de exemplo Dansen, diálogo entre um vendedor de porcos e uma estranha e sinistra personagem. Respeitam-se no cenário as fachadas das casas, simbólicas representações de países prestes a serem assaltados pelo estranho em palco. Com uma caracterização algures firmada entre os comics e o Darth Vader de Star Wars, as personagens mantêm entre si o diálogo original. As alusões às posições ambíguas de neutralidade assumidas por alguns dos vizinhos da Alemanha no início da II Grande Guerra manifestam-se num Dansen com aspecto de palhaço, vacilante, medroso, ingénuo. O estranho é uma figura intimidante e ríspida, desdenha dos contratos estabelecidos entre o vendedor de porcos e os seus vizinhos, mas coage-o a firmar consigo um pacto de amizade que não hesitará em romper quando precisar de invadir o depósito de ferro de Svensson guardado por Dansen. Seria desaconselhado julgarmos as decisões deste vendedor de porcos, traído tanto pelo egoísmo como pela cobardia. 
Com os nomes ligeiramente alterados para que seja mais fácil ao espectador actual identificar os países em cena, o humilde negociante de ferro que aparecerá em Quanto custa o ferro? é a personificação da Suécia que no decorrer das hostilidades nazis negociou com a Alemanha grandes quantidades de minério de ferro. Ora, a guerra como oportunidade de negócio não foi fenómeno exclusivo de uma só guerra. Note-se, na actualidade, como a guerra há tempos engendrada contra o terror tem fomentado as indústrias do armamento e da segurança, para não falarmos das obscuras e promíscuas redes de financiamento do arqui-inimigo declarado. 
No seu todo, este Europa 39 desperta no espectador a consciência da actualidade a partir de exemplos históricos. Nem a ingenuidade oportunista e cobarde de Dansen ficou no passado, nem a neutralidade sueca foi um exemplo isolado que iliba de responsabilidades todos quantos não souberam a seu tempo prevenirem-se e unirem-se contra o mal à vista. Entretidas com discussões de café, celebrações futebolísticas e selfies a rodos para partilha nas redes sociais, as massas representadas no termo de Europa 39 levam-nos a concluir ser apenas simbólica a data evocada no título. 
Os quatro actores que em palco se desdobram em múltiplas personagens são, deste modo, um exemplo de resistência. Reside neles um factor de estranheza nestes tempos que correm, pois com o seu trabalho procuram levar a cabo a mais nobre das intenções dramáticas de Bertolt Brecht: despertar a consciência crítica dos espectadores. Admirável é a obstinação com que o fazem, pois nada no nosso tempo joga a favor deles, tudo parece estar muito mais a favor do ameaçador estranho que desdenha dos contratos, chame-se ele Wilders, Le Pen, Orbán, Farage ou Trump. Com o desinteresse e a neutralidade que, lá está, não isentará ninguém de responsabilidades quando o mal lhes bater à porta. Citando o lavrador de uma outra peça de Brecht: «Em sanguinárias guerras de odiosa memória / Aqui está o melhor: uma planta que vive!» Fiquemos atentos.

Sem comentários: