terça-feira, 24 de janeiro de 2017

UMA BIOGRAFIA SENTIMENTAL

O título da edição original é simplesmente Bowie, tendo a editora A Esfera dos Livros resolvido acrescentar à obra de Wendy Leigh o epíteto de “biografia sentimental”. Para um fã do homem que assinou Space Oddity, a leitura assemelha-se a uma digressão pelos expositores da imprensa sensacionalista. Em suma, sexo, sexo, sexo e ainda mais sexo. Muito mais do que drogas, apesar das doses industriais de cocaína, e do que rock’n’roll, apesar de Rebel Rebel. Ficamos com a ilusão de penetrar o núcleo privado da estrela. Apesar de tudo, a sessão não chega a ser hardcore. Estará mais ao nível de E. L. James do que de Henry Miller. A ter em conta: as mulheres mais importantes na vida de Bowie foram Iman, com quem casou em 1992, Corinne «Coco» Schwab, gestora em todas as áreas da vida pública e privada, e Angie, com quem esteve casado entre 1970 e 1980. O que sobra é uma amálgama de relações esporádicas e interesseiras que pode desde logo ser resumida a isto: «David aventurou-se de uma experiência sexual para outra, lançando-se em sexo gay, ménages à trois, sexo em grupo, sexo com mulheres e depois, e talvez na mais inesperada experiência de todas, no casamento monogâmico» (p. 19). A normalidade como a mais inesperada das experiências.
Para tal contribuíram uma libido insaciável e, passo a citar, «um impressionante e muito gabado membro sexual» (p. 20). Seria fastidioso elencar todos quantos provaram de tal membro, desde as mais variadas estrelas a agentes com quem o compositor e actor tinha interesses não exclusivamente sexuais, passando por groupies e até, em determinado momento, a possibilidade de um cadáver que Bowie terá rejeitado em estado de choque. Desde cedo com preferência por gente de pele escura, contrastando com a sua gabada transparência, percorreu todos os tons e mais alguns até encontrar a felicidade absoluta ao lado da modelo somali Iman Mohamed Abdulmajid. Logo na adolescência, foi por causa de uma miúda que ficou com um olho de cada cor, depois diz-se que dormiu com o manager Ralph Horton numa época em que a homossexualidade era ainda ofensa criminal. Servindo-se de um muito sublinhado “carisma sexual” (desconheço se a obra de José Sócrates abordará o tipo), caiu nos braços de outro manager: Simon Napier-Bell. Quem seria o depredador? Quem seria a presa? Parece que naqueles tempos o sexo era condição essencial para se ser agenciado. Naqueles tempos. 
A ideia é que David «tinha-se tornado um íman para os homossexuais e estava rodeado por um círculo de admiradores masculinos» dos quais retirava proveitos e aproveitava vantagens. Em suma, um oportunista agarrado ao membro, um manipulador da elite homossexual londrina, um tipo que «Longe de se mostrar tímido com os seus consideráveis dotes genéticos, […] alegremente exibia o seu membro o máximo de vezes que podia, e tanto em palco como fora dele usava as calças mais justas que conseguia encontrar, de forma a mostrá-lo» (p. 70). A quem estivesse interessado em vê-lo, poder-se-ia acrescentar. Mas Wendy Leigh não está interessada em acrescentos, preferindo citar Angela Bowie, que alcunhou o membro de David como «a lança do amor», para concluir que nada de amor havia no tesão incomensurável: «Nesses anos iniciais em que estava a tentar subir a escada para o sucesso, o seu impressionante membro provaria ser um dos seus trunfos mais valiosos quando se tratava de lidar com uma quantidade de homossexuais presentes no mundo da música, ficando todos fixados nele e naquela sua larga vantagem para a vida» (pp. 70-71). David flirtava como método, seguindo-se a cama como experiência, acabando tudo consumado no trabalho enquanto fim. 
Era um “malabarista sexual”, segundo Mary Finnigan, «muito bem dotado nos genitais» (p. 86). E continua: «Ele não era o tipo de homem que precisava de fazer amor todas as noites, mas quando acontecia durava horas e horas» (p. 86). Tal aritmética da sentimentalidade leva-nos a questionar como lhe sobraria tempo para o trabalho. Tantas foram as horas de cama, que chega a ser inacreditável como conseguiu o homem escrever canções, fazer filmes, representar em peças teatrais, dar concertos… «Dana Gillespie (…) [e Ava Cherry] era uma das raparigas que regularmente tinham ménages à trois com David e Angie» (p. 95). O casal criava “uma teia de aranha sexual”  que levou Angie a dizer numa entrevista: «Passei os melhores momentos e os momentos mais felizes com a minha equipa de rorting. Rorting significa comer miúdas. Estávamos quatro ou cinco tipos e eu, e tudo o que tínhamos de fazer era escolher as miúdas e ver quem era o primeiro a conseguir meter-se dentro delas» (105). Pelo meio, na companhia do marido, divertiam-se a conquistar o maior número possível de rapazes e de raparigas para brincadeiras sexuais. Mas não estamos apenas no domínio da brincadeira, o acto envolvia trabalho e espiritualidade, o sexo era uma constante que levava David, segundo Cherry Vanilla, a fazer amor com todas as pessoas que trabalhassem para ele. Imagine-se a trabalheira. 
Heliogábalo do seu tempo e no seu meio, «não fodia apenas, ele fazia amor» (conversa de groupie), um amor tão universal que chegava para todos os envolvidos numa orgia, mesmo para aqueles que David abandonava depois de já não precisar deles. Todos recompensados por poderem ter estado nas mãos do Deus maior. Chega a falar-se em magia branca, induzida pela cocaína, e sistema de crenças, numa lógica sexual. Até que um dia pareceu a mulher dos seus sonhos, com quem casou, teve uma filha e foram felizes para sempre. E assim ficamos a perceber o que é uma biografia sentimental. É isto, estas histórias, estes retratos caricaturais de uma vida que parece nunca ter saído de onde foi gerada: da genitália. 

3 comentários:

Anónimo disse...

O seu esclarecedor artigo, ínclito Autor, deixa-me na maior apreensão, dado que me chegou a informação, de fonte fidedigna, de estar iminente a libertação dos prelos de «Os Papéis Perdidos de Catatau Vincennes». E não sei - forçoso é dizê-lo! - se o País está preparado...
Sou,
Júlio Bernardo o Velho.

hmbf disse...

O país que teve Soriano estará preparado para tudo: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2014/01/obras-no-panteao.html

Anónimo disse...

Considerado Autor, agradeço, penhorado, a consideração com que me alvejou, partilhando a sua gentil e deveras pertinente ficha. Bem sabemos que o País está preparado para muita coisa mas, não asseguramos no íntimo – é essa a verdade, em suma, estimado Autor – quando baixamos à sentina e consentimos nas mais periclitantes divagações, se estará preparado para tudo. Tenho as minhas dúvidas, tenho as minhas dúvidas, “hélas!”. Temo, assim, digo-o com toda a desarmada franqueza, que «Os Papéis Perdidos de Catatau Vincennes» possam incluir mangalhices semelhantes às de Junqueiro, dado que o iminente pensador era – e suspeito que permaneça – dolente adepto das vertiginosas elucubrações de sentido etílico. Nada mais nos resta, pois, senão esperar, com justificada ansiedade, a eminente – diz-se – chegada aos templos comerciais do saber desses «Papéis Perdidos de Catatau Vincennes». Mas enfim, de passos perdidos está de há muito feita a dor nacional. Aceite os meus mais sinceros protestos de estima e admiração.
Sou,
Júlio Bernardo o Velho.