quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

UM POEMA DE REINALDO ARENAS


CONTRIBUIÇÕES

   Karl Marx
não teve nunca sem sabê-lo um gravador
estrategicamente colocado no seu sítio mais íntimo.
   Ninguém o espiou do passeio da frente
enquanto rabiscava à vontade folhas e mais folhas.
Pôde inclusive dar-se ao luxo heróico de maquinar
pausadamente contra o sistema imperante.
   Karl Marx
não conheceu a retractação obrigatória,
não teve por que suspeitar que o seu melhor amigo
poderia ser um polícia,
nem, muito menos, teve de se converter em polícia.
A pré-fila para a fila que nos dá direito a seguir na fila
onde afinal o que havia eram recargas para
agrafador («E já se acabaram, camarada!»)
também lhe foi desconhecida.
   Que eu saiba
não sofreu uma imposição que o obrigasse a rapar-se
ou a extirpar a sua anti-higiénica barba.
A sua época não o cominou a esconder os seus manuscritos
do olhar de Engels.
(Por outro lado, a amizade destes dois homens
nunca foi «preocupação moral» para o Estado.)
   Se alguma vez levou uma mulher para o seu quarto
não teve de guardar os papéis debaixo do colchão e,
por cautela política,
lhe fazer, enquanto a acariciava, a apologia do Czar da Rússia
ou do Império Austro-Húngaro.
   Karl Marx
escreveu o que pensou,
pôde entrar e sair do seu país,
               sonhou, meditou, falou, tramou, trabalhou e lutou
contra o partido ou a força oficial imperante na sua época.
   Tudo isso que Karl Marx pôde fazer pertence já
à nossa pré-história.
As suas contribuições para a época contemporânea foram
   imensas.


Reinaldo Arenas (n. Holguín, Cuba, 16 de Julho de 1943 - m. Nova Iorque, EUA, 7 de Dezembro de 1990), in Poesia Cubana Contemporânea, selecção, prefácio e notas de Pedro Marqués de Armas, tradução de Jorge Melícias, Março de 2009, Antígona, pp. 51-53.

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