quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A URGÊNCIA DE UMA CANÇÃO

Será sempre ingrato tentar determinar a influência social de uma obra de arte. Não tão ingrato é procurar perceber como essa obra se relaciona com a sociedade do seu tempo. Muitas das canções que Bob Dylan escreveu são autênticas crónicas de um tempo, reflectindo angústias, temores, dramas de toda uma sociedade. Mas será que morreram nesse tempo? Terrível de constatar é a actualidade que mantêm, nomeadamente quando apontam o foco para os direitos cívicos na América de todas as oportunidades. Tomemos de exemplo duas canções do álbum The Times They Are A-Changin’ (1964), sem dúvida um dos mais empenhados em colocar a canção ao serviço de causas. Escutemos Only a Pawn in Their Game:


A qualidade do vídeo pode não ser a melhor, mas a dimensão histórica do acontecimento merece a partilha. Refere-se a letra a Medgar Evers, um activista dos direitos civis assassinado a 12 de Junho de 1963 por um declarado racista que os tribunais americanos conseguiram absolver por duas ocasiões. A performance de Dylan data de 28 de Agosto de 1963. Estávamos em cima dos acontecimentos e Dylan cantava, para uma multidão de negros, que o assassino de Evers era apenas um peão no jogo de uma injustiça maior. Que injustiça maior era essa? A forma como os brancos pobres da América eram manipulados e usados, pelos senhores do poder, contra os negros: «the poor white man’s used in the hands of them all like a tool». O ódio de Dylan, por assim dizer, não se afirmava contra um criminoso como Byron De La Beckwith, apenas condenado em 1994, mais de 30 anos depois do homicídio cometido. A letra da canção não fica pela rama, vai à raiz do problema. Outro exemplo imperdível da inteligência dylaniana é a canção The Lonesome Death of Hattie Carroll. Vale a pena ver este vídeo com atenção, até pelo que tem de pedagógico sobre a construção de uma letra para ser cantada:



Partindo mais uma vez de factos, Dylan não se limita a relatar o que levou à morte de Hattie Carroll. São diversas as versões acerca dos acontecimentos de 9 de Fevereiro de 1963 em Maryland, sendo certo que Hattie Carroll foi insultada e agredida por um rapaz branco, rico, que se encontrava alcoolizado e havia provocado vários distúrbios nessa mesma noite. Zantzinger, o jovem branco, agrediu Hattie, de 51 anos, mãe de 11 filhos, com uma bengalada, acabando esta por falecer de hemorragia cerebral. Apanhou seis meses de pena suspensa. De estrofe em estrofe, Dylan conta os factos e remata cada uma das estrofes com três versos de elevado teor crítico: «But you who philosophize disgrace and criticize all fears / Take the rag away from your face / Now ain’t the time for your tears». Só na última estrofe, depois de denunciar a injustiça da pena aplicada ao criminoso, é que o verso derradeiro se transforma: «For now’s the time for your tears». Como se estivesse a apontar todo um sistema judicial e dissesse: tenham vergonha na cara. Talvez estas não sejam canções de protesto, mas são, certamente, canções de denúncia. E é isso que as torna urgentes ao longo dos tempos. 

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