domingo, 28 de agosto de 2016

POETA E PALAVRA


Quando o ar, suprema companhia,
ocupa o sítio dos que já partiram,
dissipa seu olor, seus gestos, seus rumores
e, único, volta a preencher
a ordem natural do seu silêncio,
ele, a cujo domínio infinito se reduzem
a meia-noite, o meio-dia
(horizontes de prata ausente ou mais além de ouro)
fica com o ar em seu lugar,
docemente cingido pela atmosfera
da propriedade azul eterna.

Pode esquecer, calar, gritar então
a palavra que chega do harmonioso todo,
harmonioso todo solitário;
que o centro escuta em círculo
preparado desde sempre e para sempre;
que permanece leve e firme sobre tudo;
a vibrante palavra muda,
a imanente,
única flor que não se dobra,
única flor que não se extingue,
única onda sem fracasso.

De todos os segredos brancos, negros,
concorre a ele em eco, enamorada,
plena e alta de seus tesouros todos,
a profunda, silenciosa, verdadeira
palavra,
que só ele ouviu, ouve, ouvirá em sua vigília.
A sua carne, a sua alma unas, no seu ar,
são então palavra:
princípio e fim,
presente sem mais olhar para trás,
destino, chama, olor, pedra, asa, válidos,
vida e morte,
nada ou eternidade: então palavra.

E ele é o deus absorto no princípio,
completo e sem ter falado nada;
o embriagado deus do suceder,
inesgotável em seu nomear exacto;
o deus unânime no fim,
feliz por tudo repetir em cada dia.


Juan Ramón Jimenez (n. Moguer, Andaluzia, Espanha, 23 de Dezembro de 1881 - m. San Juan, Porto Rico, 29 de Maio de 1958), in Antologia Poética, selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Relógio D'Água, 1992, pp. 140-141.

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