sábado, 30 de julho de 2016

LUGAR DE MASSACRE



Ouvi falar de José Martins Garcia (n. 1941 – m. 2002) por culpa da colaboração entre o autor e o editor Fernando Ribeiro de Mello (n. 1941 – m. 1992), colaboração da qual resultaram não apenas alguns livros publicados nas edições Afrodite (referi-me a um deles aqui), mas também um trabalho de conselho editorial cuja relevância pode ser apreciada no imprescindível Editor Contra. Concentremo-nos no autor. É um mistério por decifrar o esquecimento abatido sobra a sua obra, vasta e heteróclita, distribuída por vários géneros e de uma riqueza linguística inquestionável. Num país com evidentes limitações literárias, só podemos considerar tamanha desatenção um inenarrável desperdício. Mesmo compreendendo o carácter de urgência com que se editam e reeditam balelas a troco de microssucessos comerciais, varrerem-se das estantes autores com características até supostamente apetecíveis para os padrões correntes só pode ter uma explicação: estupidez. Saúde-se, por isso, a iniciativa da Companhia das Ilhas, pequena e isolada experiência editorial entre tubarões esfaimados, por trazer de novo à mão de semear uma obra que não pode, não deve, não tem que cair no esquecimento. E, já agora, pela ambição colocada no projecto de editar até 2020 tudo o que de mais relevante José Martins Garcia escreveu em matéria de ficção, teatro e poesia. Seria no mínimo exigível que a boa consciência do jornalismo cultural oferecesse a este projecto a visibilidade que ele merece, fazendo desta atitude um exemplo de obstinação em defesa de uma literatura portuguesa que não se resume ao que a indústria dos livros promove atirando-se aos olhos de leitores para quem o mundo vem resumido nas páginas dos suplementos. 750 exemplares são quanto foi possível para esta 1.ª reedição de Lugar de Massacre (Maio de 2016), originalmente publicado em 1975. Que bom seria que esgotassem rapidamente, sinal de alerta para quem julga os leitores adormecidos e deles tem a ideia de sonâmbulos facilmente manipuláveis com truques de hipnotismo. Quem me leia, vá por mim que não se arrependerá. Lugar de Massacre é um dos melhores romances em língua portuguesa, vindos a lume no séc. XX, que tive oportunidade de ler. 160 breves páginas de uma intensidade e de um fulgor impressionantes, com a Guerra Colonial Portuguesa em pano de fundo mas sobre muito mais do que essa experiência traumática. Diz-se em nota biográfica: «Chamado a cumprir serviço militar, em 1965, foi mobilizado para a Guiné, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra em África, incluído por Rui de Azevedo Teixeira no grupo dos oito romances obrigatórios, canónicos, da literatura da Guerra Colonial». Pode parecer retórica publicitária, mas mesmo que seja são justíssimas as palavras. Desenganem-se, porém, aqueles que esperarem da narrativa um testemunho pessoal, biográfico ou confessional, desenganem-se também os que pretenderem leituras políticas engajadas e vinculadas a esta ou àquela tendência. O tom é de sátira e balanceia, nas suas duas partes, entre a pura comédia e o trágico à moda clássica, deixando-nos emocionalmente ambivalentes se formos, como eu fui, desprevenidos para a leitura. Rapidamente saltamos do riso para a raiva, do caricato para o indignado, do ridículo para a revolta, perpassando por todas as personagens e nas situações em que se envolvem (algumas dignas de constarem numa antologia do melhor humor português) um ar de loucura e de alienação que nos transportará de facto para a demência como se estivéssemos a fazer a viagem de Conrad que serviu de inspiração para o Apocalypse Now. Vietname à portuguesa, a Guiné deste livro é um lugar de massacre, sobretudo, da consciência e da lucidez, massacre de vidas físicas, de existências, mas de sonhos e de ideais, de crenças e até de lugares-comuns. Um lugar que nos deixará aos berros com a mais central das suas personagens, um intelectual das letras entregue ao álcool e à deriva pelos matagais do delírio: «— Se o humano é a vossa merda, recuso esse humano. Acabou-se!» Mas até chegarmos aqui teremos de aguentar os tormentos mesquinhos de um snob, a avidez dos mosquitos, reaccionários intriguistas, veteranos obesos, bacanais de homossexualidade em aquartelamentos que mais se parecem com saunas, europeus selvagens em missão civilizadora, condes, viscondes, barões e outros que tais de uma monarquia oportunista, discursos pastosos que caem tão dignamente nos tempos que correm: «Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Nesse aspecto, a cultura é como a maquinaria: só se vende aos subdesenvolvidos a tralha que deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o raio da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou. A Europa e o seu falso pudor…» (p. 44) Nada disto é de ontem, cada palavra mantém um interesse histórico que a faz valer enquanto retrato cultural. Ontem colonos, hoje colonizados, pouco importa. O que interessa é a mecânica do processo, a hipocrisia enquanto óleo de uma máquina velha, a rebentar de podre, deixando no desespero os operários enquanto no alto dos gabinetes marionetistas se entretêm com jogadas de argumentação e póqueres milibilionários. Entrementes, o desabafo doloroso:

— Por que não desertaste? — interveio Miguel.
— Também gostava de saber… Falta de contactos, talvez. Não, não desertei porque não tenho qualquer ideologia. Os cépticos radicais não podem optar. E deixam-se utilizar pelo poder. E gastam tempo a compreender isso… Só depois do jogo jogado é que medem a extensão da asneira.


Imperdível.

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