quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

THE REVENANT (2015)



Não é a primeira vez que a odisseia de Hugh Glass (n. 1783 – m. 1833), explorador, batedor e caçador de origem irlandesa, é objecto de uma adaptação cinematográfica depois ter sido fixada entre os grandes mitos do Velho Oeste por inúmeras obras literárias. A primeira ocorreu em 1971, pela mão do realizador Richard C. Sarafian, com Richard Harris no papel que coube a Leonardo DiCaprio em The Revenant/O Renascido (2015). Vale a pena rever o trailer de Man in the Wilderness/Um Homem na Solidão para constatar como em múltiplos aspectos as cenas se repetem, embora no essencial os filmes se distanciem até pela orientação biográfica que oferecem à sua personagem principal. Alejandro González Iñárritu opta por um Hugh Glass culturalmente dividido, produto híbrido de um encontro trágico entre a civilização europeia e a natureza selvagem dos nativos. Reza a lenda que Glass viveu vários anos com os Pawnee, tribo do lendário chefe Sharitahrish a quem devemos estas sábias palavras: «O Grande Espírito fez-nos a todos – fez a minha pele vermelha e a vossa branca; pôs-nos nesta terra e entendeu que deveríamos viver cada um de forma diferente. Criou brancos para cultivar a terra e alimentar-se de animais domésticos; mas a nós, peles vermelhas, criou-nos para deambular através das florestas selvagens e das planícies; para que nos alimentássemos de animais selvagens e vestíssemos as suas peles» (in A Alma do Índio, Padrões Culturais Editora). A diferenciação referida por Sharitahrish diz respeito a modos de vida distintos e aparentemente inconciliáveis num mundo onde a sedentarização prevaleceu sobre o nomadismo, colocando-se Glass naquele lugar ambíguo das personalidades históricas mais fascinantes. Entre a realidade e o mito recai sobre a sua biografia toda uma reconstrução popular muito típica da historiografia nacional norte-americana, sendo certo que actuou ao longo da bacia hidrográfica do Rio Missouri num vasto território algures entre os actuais estados do Montana e Dakota do Norte e do Sul. Estamos, portanto, numa região fronteiriça a Norte, caracterizada por uma topografia montanhosa, repleta de florestas e de vales húmidos cobertos de neve durante grande parte do ano. É impossível assistir ao filme de Iñárritu sem nos deleitarmos com a fotografia dos cenários naturais escolhidos para a rodagem, não obstante a paisagem ser um elemento fundamental que não esgota todas as dimensões de uma obra mais complexa do que possa parecer com um copo de pipocas na mão. As cenas na neve remetem-nos para filmes como Day of the Outlaw/Homens de Gelo (1959), ou para épicos de Anthony Mann tais como Bend of the River/Jornada de Heróis (1952) e The Far Country/Terra Distante (1954), mas neste novo filme há entre a paisagem e a personalidade do protagonista uma espécie de elo inquebrável. Parecem ambos o prolongamento um do outro, ou, se quisermos, confundem-se ambos no que têm de enigmático, fronteiriço, belo e selvagem. A opção por um Glass híbrido não é inocente, enquadrando-se, inclusivamente, na tecelagem que une a obra do realizador mexicano. The Revenant aproxima-se de um filme como Babel (2006) pela reflexão que propõe acerca dos muros que separam os povos, das fronteiras que dividem a humanidade, da própria relação conflituosa que a humanidade mantém com a natureza de que é parte integrante e não exclusiva. Sequências como as de Hugh Glass a ser atacado por um urso ou a extirpar um cavalo para se proteger do frio no interior da carcaça do animal não têm um propósito meramente sensacionalista, nem sequer impressionam pelo realismo com que a violência é exposta. Elas têm uma dimensão simbólica que supera os domínios rasteiros da violência gratuita, tal como sucedia, por exemplo, em Amores perros/Amor Cão (2000). Já alguém fez notar que a perda do filho mestiço, fruto da relação com uma índia Pawnee, é uma das componentes mais fortes, em termos narrativos, deste filme, o qual correria o risco de se transformar em mais uma encenação da vingança não houvesse nele esse teor místico de entregar às forças unificadoras e superiores, chamem-se elas Deus ou Natureza, o curso e a razão de um destino. The Revenant não é, neste sentido, apenas paisagem, é mais um manifesto em favor de um renascimento colectivo que apela à mestiçagem como factor de superação das razões étnicas, culturais, sociais, que dividem os povos. Na personagem de Hugh Glass está contido um desejo acerca da humanidade. Ingénuo ou não, isso é indiferente. Que função mais nobre podemos esperar de uma obra artística, desde a tragédia grega aos nossos tempos, do que idealizar o que é humano fazendo-nos acreditar que por cima da realidade prevalece o sonho e a utopia?

2 comentários:

panaceia disse...

Boa noite, Henrique

Eu gostei imenso do filme, aliás como dos outros deste realizador (Alejandro González Iñárritu).
Apenas uma nota sobre Hugh Glass: Nascimento- 1783 Morte- 1833

Um abraço

Lia

hmbf disse...

:-)

Na realidade, o que aquele 19833 quer dizer é que o homem se mantém vivo nos nossos corações. :-)))