sábado, 31 de outubro de 2015

FIRECREEK (1967)



Com um percurso invejável no território das séries televisivas, o realizador Vincent McEveety (n. 1929) nunca logrou um lugar ao sol nas salas de cinema. Firecreek/Hora da Fúria (1967) foi a sua primeira longa-metragem, filme repleto de citações (High Noon à cabeça) com um elenco incapaz de relegar para segundo plano uma obra perdida algures num tempo em que o western resistia, enquanto género, apoiado nas encenações da violência de Sam Peckinpah e nas óperas visuais de Sergio Leone. McEveety desviou-se do seu tempo optando por um tom eminentemente trágico, à maneira dos clássicos alicerçados em conflitos morais e paradoxos axiológicos. Para o efeito rodeou-se de actores que, quer num primeiro plano (James Stewart e Henry Fonda), quer num segundo plano (Dean Jagger e Jack Elam), carregavam sobre os ombros um legado perfeitamente identificável no domínio das recriações do Velho Oeste. Henry Fonda surge, tal como em Once Upon a Time in the West (1968), num raríssimo papel de vilão. É o líder de uma quadrilha em fuga que pára na pacífica cidade de Firecreek para se recompor de uma ferida aberta. Firecreek, palavra que podíamos traduzir como “vale do fogo”, é uma cidade parada no tempo, calma, demasiado calma, onde tudo está arrumado no seu devido lugar, habitada por gente acomodada à perspectiva de um lugar seguro, um refúgio onde ninguém tenho pelo que lutar nem pelo que competir. O xerife da cidade é um humilde agricultor, nomeado interinamente e sem vocação que não seja a sua honestidade, a sua normalidade, a sua postura pacificadora. Usa escondida na lapela uma estrela de lata, recortada pelos filhos, onde se lê a palavra Sheraf. 


O plano da estrela é especialmente simbólico do clima social contrafeito que a quadrilha do pistoleiro Larkin se encarregará de humilhar, uma sociedade erigida sobre estacas rudimentares, de costas voltadas para o futuro, aparentemente satisfeita com a razoabilidade inquestionável das horas previsíveis e das expectativas tão baixas que impossíveis de gorar. O grupo liderado por Larkin será o elemento perturbador no centro da geometria social. McEveety filma as suas personagens pelas costas, oferece-nos ângulos de visão impensáveis, espreita pelas brechas frustrações recalcadas no fundo das acções. Que pretende mostrar-nos ao filmar a jovem fogosa Leah (Brooke Bundy) a contemplar-se a um espelho que são os nossos olhos? Talvez o desejo e a paixão castrados pela presença de uma mãe remoída, que não sabemos se solteira, se viúva, se abandonada, mas que sabemos de mal com os homens. Há uma personagem secundária em Firecreek que sintetiza bem o ambiente do lugar. O senhor Hall é típico, anda de uma lado para o outro a atormentar o pobre agricultor indigitado para protector da cidade com questões sobre os forasteiros, com sugestões sobre o que deve e não está a ser feito, delegando nos outros, constantemente, a responsabilidade por acções que ninguém ousa praticar. É o tipo de pessoa que em vez de agir espera que os outros actuem por ele. E há o ex-advogado ali sediado, dono de uma retrosaria, a observar impavidamente o medo de todos e a questionar-se sobre a sua vinda para aquele lugar. O que ele deixou para trás foi o desconforto da luta, trocando-o por uma vida em que, ao não ter que lutar por nada, só será perdedor por não ter de agir. São todos bem sucedidos na inacção, são todos perdedores (loosers, frouxos) quando toca a dar um passo em frente, quando toca a decidir. Eis os conflitos íntimos que levarão Johnny Cobb (James Stewart) a agir, depois de ouvir a sua mulher, prestes a dar à luz, falar-lhe do passado e dos sonhos que ficaram por realizar. As suas dúvidas espoletarão a raiva que se esconde por debaixo da frustração: «Por que não continuámos? Por que nos contentámos com menos do que queríamos?» Podemos ver aqui tanto um elogio da ambição como uma censura do contentamento. Um contentamento que apodrece a paixão e usurpa sentido à vida. Daí que entre Larkin (o pistoleiro interpretado por Fonda) e Cobb (o agricultor interpretado por Stewart) não exista grande diferença, são ambos, à sua maneira, desonestos. Um para com os outros, o outro para consigo próprio. A fotografia de William H. Clothier (trabalhou com Ford em O Homem que Matou Liberty Valance) e a música de Alfred Newman são mais dois argumentos técnicos para não deixar cair no esquecimento a estreia de Vincent McEveety. 

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