terça-feira, 22 de setembro de 2015

JORNAL PARA LER E NÃO PARA OLHAR


ASSIM COMO ASSIM

   Em 1965 o poeta (sem farda) Pedro Oom escreveu o poema «excessivamente assim assim». Na sua antinomia o título puxa pela meninge e pode servir de chave para se abrir leve levemente a porta do quarto escuro da nossa fenomenal actualidade. Tão-somente para satisfazer qualquer eventual curioso, transcreve-se esta passagem: «todavia / a actividade frenética / entre as rugas / da perplexidade / e o desejo / venal / de exibir / a mão direita / hermeticamente / fechada / segundo / o código / denominado / "ESCARRO" / enquanto / o avanço / é mínimo / será (sempre) / de êxito / duvidoso».
   Premonitório? - Nem nesses idos, que o país é tão conservador que retém na tripa aquilo que a gente sabe.
   Apesar do grosso dos indígenas (os que vão à bola e espreitam reality-shows) não ligar pêva ao faladrar ou escripturar de jornaleiros & comentadores (muitos todos ex-radicais reconvertidos à moeda única se bem que não descurem a libra ou o dólar - recebem qualquer coisinha), insistem estes até à esganação e respectivo escarro nas desgraças, nas tragédias que nos (nos?) aconteceram em 1975, o fatídico, o horrível, o execrável, o excomungável ano do PREC. Coitados, fartaram-se de penar. E, se não penaram como se diz na carne (inda eram pequeninos, inda mal abriam olhos), tomam para eles as dores alheias (dos infortunados Mellos, Espíritos Santos, Champalimauds & Filhos) e vá de apostrofar da penúria em que tropas de mentes esquentadas e barbudos histéricos mai'las companheiras de buço na venta deixaram «o País» ao entreterem-se a nacionalizar bancos & empresas satélites, a ocupar à maluca prédios e coutadas de caça, a sanear cidadãos muy leais ao bem da nação, a bolsar inomináveis heresias comunas em comícios e manifes, enfim, a pintar a manta com tal gana, com tal frenesi que a Pátria vacilou nos seus egrégios avós e até ia escorregando numa anarqueirada do caneco, numa guerra civil aí de peito-feito o santo condestável da democracia soft jorrar qual fonte luminosa a palavra refrescante «Basta!»
   (Uf!, o parágrafo ia-me exaurindo a caneta quanto mais a molécula ofendida!)
   Cá por mim sempre vos digo que me dei muitíssimo bem com tais desmandos. Por um lado, é certo que não tinha nada a perder (e quantos comigo?), por outro, vero é também que não almejava ganhar o que quer que fosse, na esfera pfinanceira como na cama elástica da «política», a não ser liberdade - essa trivial de pensar, escrever e dizer o que me viesse à pinha sem ter de fintar censores ou mirar de viés a ver se havia pide, mosca varejeira no horizonte breve.
   Só por isto, em absoluto simples ainda hoje grato estou à militarada (que querem?, também eu sou conservador) o ter corrido com a cambada do Dinossauro antes de, por sua vez, ser ela corrida pela cambada que lhe cavalgou a crista, virou para o oco pós-moderno os seus intuitos democratizantes e refundou, repimpada, a Estabilidade, a velha Estabilidade ora cosmetizada dos plutocratas, vulgo, homens da maçaroca (os Mellos, os Espíritos Santos, os Champalimauds, acrescentados dos abrilistas Amorim, Berardo, Roquete, Coutinho e o Belmiro dos 1,2 milhões de euros ganhos honradamente com o suor do seu rosto coriáceo).
   Mas então ia eu a dizer que me regalei com aquela borbulhagem, aquela brotoeja, aquele acne «revolucionário». Doenças infantis venham mais dessas que farto de respeitinhos andava eu, já não podia ver à minha frente tanto marmanjo com cara de gravata. Se é verdade que me mingua a índole de marchista (sou um rapaz tímido até), se aqui confesso à puridade não me sobrar pulmão para pavarotizar no calor da horda morte a isto e àquilo ou força força companheiro Vasco, não deixe de se enfatizar que sim senhor exultei com a balbúrdia geral, a chinfrineira desbocada, o inchaço das «tomadas de posição», a cantoria como arma, as épicas pintuas murais repletas de soldados & operários & camponeses a espantar pardais argentários, o sangue na guelra de cardumes de carapaus de corrida... e o valentíssimo cagaço da burguesada bem-vestida que até arrancara a gravata para se mostrar também ela «filha do povo» e, como tal, acertar o passo - esquerdo, direito - rumo ao «socialismo», viu-se, vê-se. Sabe quem me conhece que gostei sempre de teatro: nesse de palco e plateia cheguei mesmo a fazer uma perninha.
   De modos que, caros leitores (estás aí?), quanto aos referidos cujos malfadados «excessos» vamos lá com calma. Mortos, que tivesse sido apenas um já seria demais- é o meu bom coração a manifestar-se. Mas foram poucos, português suavemente poucos, para tão vergônteo estardalhaço «revolucionário», tanta espingarda distribuída, diz-se, por tanta mão solícita. Fogos da reacção, lá para as bandas da Maria da Fonte - alguns, uma caquinha ao pé dos de hoje, climatéricos. Cabeças rachadas, luxações, entorses - avonde. Cargas policiais em reivindicativos exaltados (fascismo, nunca mais) - qb. Assassinatos políticos - a direita encarregou-se. Cercos ao Parlamento, ao Palácio de Belém, ao Palácio de Cristal, ao jornal República do dinheiro da social-democracia alemã - um dó li tá. Mas quem viu têvê, ouviu gralhas radiofónicas ou leu os jornais de então (como pode ler agora os apanhados retrospectivos) é de pôr os cabelos em pé, ai jesus santa maria santíssima: rios de sangue nas calçadas, turbas a incendiar igrejas e a violar as servas e servos do senhor, homens de leis e proprietários varados à metralhadora, campónios a esventrar agrários honestos, generais a deixar crescer patilhas, pobrezinhos a salvaguardar pratas da família no aeroporto da Portela aguardando exílios em goulagues distantes, mulherame de mau porte a exibir descaros mamários, pilhagens, assaltos à mão armada, fuzilamentos, criancinhas espavoridas, ó mãe, ó maãe. Como na Revolução Francesa, que também «caiu na rua», o Terror alastrou de norte a sul, cabecinhas ao cesto. Traduza-se: torrentes da primavera, inflamações retóricas, zaragatas inflacionadas pela rapaziada merdiática à espera de melhores empregos, de mais lustrosas escravaturas voluntárias. Excessiva quando muito só a esperança de alguns ostensivos relapsos ao oportunismo furta-cores num Portugal-outro, numa terra de gente até que enfim à altura de ser livre e solidária. Apesar do som e da fúria, o impulso disparado nas várias frentes do «processo revolucionário» não passou de assim assim. A mim não se me dava que tivesse havido mais. E por muita verborreia que me fure os tímpanos sobre o advento de uma outra ditadura, dita «social-fascista», acontece que não sou daqueles que engravidam de orelha. Capítulo ditaduras, que dizer do império do betão, da praga do automóvel, da parafernália de tralhas «indispensáveis» (incluindo as «culturais»), da futebulite epidémica, da anestesia geral televisiva, da espionagem vigilante para minha «segurança», do medo instalado nos locais de trabalho, do massacre publicitário do «admirável mundo novo» virtual e da partidocracia metastizante que reduz o Estado a uma tribo de empregados de escritório ao serviço da «Economia»? Que dizer, afinal, da ditadura sem rosto visível que nos enleia com «liberdades», «cidadanias», «desenvolvimentos», «modernidades», «desafios», mas que a todos toma por gado imbecilizado? Domesticada embora, ou se quisermos silenciada pela incontinência verbal virada para o interior do vazio, a indignação hiberna sob um céu de chumbo. 

*

   Após a rectificação do 25 de Novembro, que varreu a tripa para o caixote do lixo dos quartéis e arrecadou na prateleira (ou na prisão) os mais atrevidos dela, e os retornados dos Brasis às suas posses, e os pides às pensões por bons serviços, e os trabalhadores aos sindicatos ordeiros, e as elites aos conselhos de gestão, e os pintores às fundações, e os escritores ao prémio (para consolação), e o socialismo à gaveta, retornou tudo aos eixos e navegou-se que navegar é preciso rumo à «pacificação da família portuguesa» que tão abalada fôra pela luta-de-classes (de tanto hematoma esgotara-se o hirudoid) e à Estabilidade, inevitavelmente democrática. Já foi esta melhorzinha, parece, não havia tanto aperto, pagara-se ao FMI e ao Banco Mundial, nossos mecenas, umas tantas barras de ouro (vão-se os anéis...), a gasolina pingava mais em conta, de maneira que a malta, em transição de remediada a upa! classe média, ia ao amendoim e à imperial, a águas na Costa ou às couves nas berças, ao empréstimo pechincha para a casinha e para idem. Os dois dias desta vida a decorrem pacatos, fofos, com polícias nas ruas e nos espíritos. Como não há bem que sempre dure, chegou entretanto a hora do choque petrolífero (malditos árabes) e dos ataques à má-fila da China e da Índia (hão-de pagá-las) à cristiana economia ocidental. De supetão, a CRISE. E a doer: estatísticas de matar um morto (3,4 doentes per capita! 7,8 de subsidiodependentes!, -14% de exportação de tremoços!), dirigentes de cariz severo e investidores polidos lacados com arengas de apocalipse, comunicação sucial aflitíssima com os azares do patronato, fogo no porta-aviões da segurança social pública (a privada recomenda-se e a caridade faz o resto), submarino do desemprego a pique, três tiros no cruzador da República, dois no da Democracia, um míssil terra-ar no Estado de Direito, uma bomba de hidrogénio nos Valores Pátrios. Ó da guarda!
   As máquinas reprodutoras ideológicas da velha e da nova oligarquias (que não têm ideologia - vade retro! -, foi esta para o penico da pós-modernidade) não nos dão repouso, martelam-nos dia e noite a nossa culpa: gastamos demais. É que graças aos generosos donativos da Multinacional sediada em Bruxelas (que em troca só pulveriza o que resta do tecido produtivo) importamos tudo ou quase tudo do que realmente necessitamos ou do que nos impelem a necessitar - dos clips ao papel higiénico, dos neo-escravos negros e eslavos aos preservativos, sem contar com as couves galegas, os maltes escoceses, os telemóveis, os futebolistas, o café solúvel, os sistemas de gestão ( ou as 100 maneiras de cozinhar despedimentos), os bailados da Pina Bausch e os projectos do Gehry, os computadores, os óculos de sol, o peixe congelado, os piercings e as tatuagens, os buracos do golfe, que sei eu?, os próprios buracos do Orçamento, que chegam de longe como a fama do Porto Sandeman.
   Acresce que, latinos, somos atavicamente calaceiros, isto é, fazemos tudo para não fazer nenhum. Competitividades, produtividades, rentabilidades, sustentabilidades, é isso léxico (algo minimal-repetitivo, convenhamos) dos nossos senhores formatados nas Saxónias, que bem precisam recorrer a tais mezinhas se querem o bólide metalizado da praxe anual. Acresce ainda que estamos todos muito mal habituados aos privilégios das «conquistas de Abril» e à fartura que nos chegou dos cofres de Bruxelas. A choldra não tem juízo e o corpo (do Estado) é que paga, que é como quem diz, o Estado é que assume, corda ao pescoço, o ónus da dívida. Ora o Estado - vem nos livros - somos todos nós, logo, também cá o rapaz deve aos accionistas de Bruxelas uma pancadaria de massa: quem é que me mandou reciclar o Mercedes em B.M.W. e passar férias em Honolulu, quem é que me mandou vender a minha rica empresa aos espanhós, quem é que me mandou fazer mão-baixa aos cofres do Tesouro para depois perorar que ele está falido e concluir ipso facto que só o meu músculo liberal (o bom coração, ainda e sempre) é salvador? Assim, está visto, naufragam os Valores: do Legado Histórico (as Brumas da Memória), da Cidadania, do Civismo, da Qualidade de Vida. E até a Língua Portuguesa, the last stronghold os Portuguese Identity, está entregue a bichos como eu e o Lobo Antunes que a continuar na mesma ainda é castigado com o Nobel que ele tanto persegue, coitado.
   Ah!, meus amigos (continuas aí?), a Pátria submerge num mar que já nem é nosso (chora agora lágrimas comunitárias), a juventude cafrealiza-se na maior, os velhos do Restelo recolhem às Galinheiras, o Abrunhosa deixou de talvez foder e mostra o rosto sedutor a impingir empréstimos bancários, o Mourinho vira Marca Registada, o Balsemão travestiza-se em Lili Caneças, esta em Freitas do Amaral, este em Inês Pedrosa, esta em Almirante Reis (com bigode), este em Agustina Bessa Luís, esta em Chouriço de Sangue, este em Padeira de Aljubarrota, esta em Eduardo Prado Coelho, este em Bolacha Au Beurre, esta em Cavaco Silva, este em Gomes de Sá (com 2 azeitonas), este em Custódia de Belém, esta em Mário Soares, este em Zita Seabra, esta em Maria Albertina (com sua filha Vanessa), esta em Vasco Pulido Valente, este em D. Maria II, esta em Olívia Palito e eu próprio em maoísta arrependido antes do parto (sem dor) para Estrasburgo. A promiscuidade. O pântano.
   O HORROR.
   Face a isto, e ao muito mais que nos espapaça as células grises e nos leva de charola aos libriuns dos psis, q'é dos excessos de Abril, q'é deles, tão líricos, tão festivos, tão assim assim? Que é da turba-multa tão emp(r)enhada em «mudar o Mundo» e agora empenhada à banca e ao fisco?
   - Uma saudade de pedra.
   Mas coragem Portugueses!: assim como assim podemos sempre desenrascar-nos com a economia pirata - não é só o ladrão de Bagdad a ter direito. Pirata ou «paralela», como também é alcunhada, só no infinito encontrará a outra, a «legal» - di-lo a geometria.
   O inferno é os outros. «Senhores Passageiros, cuidado com as carteiras» - estação Senhor Roubado.


Vítor Silva Tavares, in PREC - Põe, Rapa, Empurra, Cai, propriedade Abril em Maio, número zero, Novembro de 2005.

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