domingo, 19 de julho de 2015

[A TERCEIRA MISÉRIA]


1.

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;

2.

Essa beleza que era também espanto
Pelo dom da palavra e pelo seu uso
Que erguia e abatia, levantava
E abatia outra vez, deixando sempre
Um rasto extraordinário. Sim, a hora,
Dois século atrás, em que uma ausência
E o seu grande silêncio cintilaram
Sobre a mão do poeta, em despedida.

(...)


Hélia Correia (n. 1949), in A Terceira Miséria (2012). Recentemente distinguida com o Prémio Camões, Hélia Correia estreou-se com o livro O Separador das Águas (1981). «Consagrada com a novela Montedemo, 1983, (…) em que se baseou uma peça de teatro e que funde sugestivamente um caso de maternidade mal vista com um ambiente rural e uma aura de prodígio, Hélia Correia, depois de outras obras intrigantes, publica, em 1991, A Casa Eterna, em que a reconstituição quase detectivesca de uma estranha morte dá ensejo a curiosas mini-histórias e flagrantes cracterizações conotativas dos narradores» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «No seu regresso à poesia, com A Terceira Miséria, (…) parte da famosa e devastadora pergunta de Friedrich Hölderlin: «para que servem os poetas em tempo de indigência?» Uma questão que faz tanto sentido hoje como fazia há dois séculos, porque mesmo «sem deuses» ou o «sentimento / sequer da sua falta», mesmo reduzidos agora à condição de «pobres confortáveis», sofremos de «idêntica indigência». Ameaçada por Persas que desta vez chegam do Norte, é na Grécia que se volta a jogar o nosso futuro enquanto civilização. (…) Há nestes versos muita melancolia, uma tristeza face às ruínas (hoje mais simbólicas do que literais), um sentido agudo do que ficou perdido talvez para sempre, mas também uma vontade de escapar ao abismo da resignação» (José Mário Silva, in Expresso).

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