quinta-feira, 2 de abril de 2015

SAUDAÇÃO A ÁLVARO DE CAMPOS


Portugal-Prometido, dezassete de Abril de dois mil e doze...
Eiaaaaa-a-a-a-a-a-a-a-a!

Desde aqui de Portugal emagrecido, deste Deus murado
neste corpo presente, eu te saúdo, Álvaro, eu te saúdo irmão
de todos os sonhos descampados da alma, eu de preto
eu de cotovelos nas coisas por dentro, eu desmoronando
junto a ti no que sinto, vindo silêncio na emoção de todas as línguas
de mãos dadas, Walt Álvaro, nós bebericando cariocas de limão
em cada homem, descendo como subindo do Príncipe
ao Calhariz os três provando do mesmo sal numa atmosfera cosmopolita
de todos os Portos, de todas as Eras porque ah não há coisa melhor
que o sinal de abertura de uma estância balneária, e o juízo a correr livre
musculando tenras na areia as fés, e o resultado disso:
umas férias grandes como um dia vivo na tua alma!

Eh uma Granada interior!
Eh um tapete à saída da Igreja!
Eh um rei menino movendo-se além do trono!

E nós rezando pelos candeeiros apagados —
pelo sentido engarrafado da água, pelo sossego de lago dos jardins
pela exaustão das governantas, das criadas, dos seus cansaços relvados
nos dias brancos das grandes praças vistas só do parapeito
para baixo, e um templo andarilho nos movimentos mínimos
da consciência adolescente por intensidade.
Eu tu e ele reais em todos os Terreiros do Paço.
Profetas de todos os desastres num dos mundos de verdade.
Em todos os brilhos de cavalo ao sol.
Em todos os fechos que abotoassem o cheiro por dentro a Palácios.
Ó inflamação desta coragem ameaçada de ser sim
nestas mãos que crescem de antiguidade no futuro de ti!
Ó amor descalço na minha perplexidade, matrimónio por cima
das formas servindo transporte às sonhadas!
Amor na presença do sim beija-me como um beijo da tua boca.
Tempera-me de embriaguez deusa por autorização de mosteiro.
Deixa-me por fora como o amor num estado de olhos.
Esposa ardendo abundâncias, amor secreto nesta enorme brincadeira
de velho com menina precoce e bailarina.
Foge por mim correndo como seta sem arqueiro
e que isso seja uma prece de fim de mundo, deste
que outro começa batendo as portas desta majestade
sem magistério, neste dia que tem o modo do teu regresso
e tudo comece a ruir por fundamento conforme destinado
cruzeiros, rosários, tudo no 720 para o Calvário!

Eia paliativos do Jardim das Delícias com uma grade ao meio para ser fechada!
Eia tudo às escuras tudo repleto nada impedido nada ninguém!
Nessun dorma nessun dorma tu pure o principessa renascida paúl
das grandes óperas: expresso-Nazaré, expresso-Miami, piscina privada
para o condenado contigo também naquele jardim ali!
Blüte nur! Blüte nur com três janelas ao meio e tu relento
sem ninguém saber de nada!
Eia tudo absurdo! Tudo subitamente escorbuto, em dieta de vitamina C de
civilidade!
E o testamento ao colo do Csar lido em voz alta: "se fazem favor
ponham os pobres em marcha, e num foguetão grande
os biógrafos de cloaca dos anjos como se os anjos fossem de andar!"
E os filhos de escravos libertos Horácios, Dantes, Miltons, Joyces oblíquos
por lhes beberem o recheio irrompendo berbequim!
E as Conferências do Casino epistémicas brutais enganando-se alguma coisa
até aqui!
Enganaram-se mas a tempo de um tempo que visse a salvo a pala do Camões
a ser leiloada e de cetim!
Eia contemplativos contra padres, urinóis destapados para os teologais chatos!
Eia as razões para as viagens fora daqui, as razões de todas as viagens
para as faculdades sem Universidades!
Ó zelosos circuncisos escândalos-luto da sifilítica modernidade!
O Evangelho é rei: estamos espiritualmente atapetados!
Não há imposto à verdade está tudo desencarnado!
Abram alas ansas parteiras para o meu amor anárquico, quero sair
em pêlo de lontra pelos mausoléus com os vossos bizantinos sentados!
Casar-me desta musa libertária por higiene traduzida para o inglês
alto génio convertido em felino argot!
Venini ecclesia veterem porta tudo namorando com o que não importa!
Venta Silurum onde ninguém mora...

...

Mas hei-a Capela Sistina e o metropolitano até Belém!
Eia as grandes capitais das cidades dos mortos das árvores permanentes!
E tudo jogando fumando nos bares às nove e meia da noite!
E os afogados de sentinela nos inconcebíveis de Porto Salvo: nenhum!
E uma soma de peitos arredondando assobiando como aves de pedra!
E o céu fundo e grave existindo para ser fitado: a sério!
E os soutiens espirituais como anjos pendurados, e em pinheiros de Natal!
E ligas de cinta ligas de ouropel pingando manchadas porque sim!
Antes as confissões em jejum dos dias primeiros que este bordel!
Antes casamentos desarrumados e baptizados ao léu que homens de fato!
E as repartições marteladas com as minhas mãos titulares de liberdade!
E todos os selos em envelopes lambidos desde Santa Bárbara!
E todos os não enviados porque haviam de ser desviados!

Eia celebrando! Eia literando esta algariça de enxergões críticos deitados
numa ideia melhor amiga de si!
Eia loreleis de popeline dando de corpo no iate do Príncipe Abdulaziz
que é o 4º maior do mundo!
E cabernet sauvignon numa taça de acetato para o rei de Jerusalém
que há-de chorar se não tiver ninguém!
E o Bispo de vermelho e sapatos num bairro de lata sem jardim!
Deixem passar que ele quer vomitar um drama bíblico por cidade!
E os eclesiásticos prelados contar-lhes os botões: trinta-e-três!
E o casamento cigano e o Pentecostes na televisão ligada e uma colher no arroz
com a Arrábida por cenáculo!
E os grandes rios os grandes Portos e o Golfo sarónico do rei nele afogado
porque se afogou nele de facto!
E as Salomés de Bizâncio dançando com Sigrdrifa e Göll featuring Santo
Encomendado!
E uma notícia amorosa no levo giro da roda mas ah pisada no próprio reflexo
com o peso do carro!
Poraaaa! Isto imensamente isto!
E a poesia nisto! A poesia isto, os pais nos aniversários das filhas mas
crucificados no pátio!
Eh todos unidos de tardes que não ocuparão metros por ser isto estatura
de um velório sem fausto!

E os cunhados e as vizinhas abanando-se em mini terraços de cozinha
onde cheira a cozinhados!
E tibornas de milho para o exercício oral de chamar galinhas no plural e na
boca!
Hei-a-a-a-a-a venham todos pintados grande Canyon filigrânico
nesta metafísica de sitiados!
Aaah aah e ah! Tudo segurando cintando existindo por conceito, tribunal
de satoris lucefécit para cada Cabo!
Tudo um sonho sensual à distância de um velho morrendo sem visitas.
Tudo procurando por recompensa e nada se procurando em ninguém.
Tudo adjectivando nos arredores da alma que supõe uma outra gravidade.
Tudo misto, tudo ajeitado, nada substanciado, nada ninguém morrendo por
nada.
Gehena Golgotha beijando na cruz o confiscado.

...

Ah feitores de volumetria de vocês, pressupostos de vós mesmos
Zoroastros chinelinhos, por obséquio poupem-me da esquerda para a direita
dos vossos autos guindados que eu também tenho sangue a ferver.
Dêem-me raça ou calem os movimentadores!
Aríete hidráulico entre mim e vocês ultra privados!
Cilindro metafísico por argumento de obra sem lava-pés!

...

Namoradores iscariotes de abas: trinta siclos de prata pela vossa coisa sentada
que um beijo vosso morre idoso!
E a religião que é dança para o vosso Deus que está morto!
E o nosso que é ócio mas nunca foi bronco!
E o panteão nojo!
E o portão faustoso!
E o diabo depressa!

Isso! Irromper pandeireta, irromper turbina, zurzir pelos vossos ouvidos
rígidos
e moucos, que tudo está mais voando que esta desonra de baixeza!

...

Eu te saúdo negro capitel de tonelagem física dos teus navios piratas...
Investida marítima de ti por mim dentro, irmão dos sálios de um só rei
ideado!
Quero o que não for nascido, o meu reino pelo desconhecido.

Uma cidade sem leis naturais para ir ao pão nesta cidade.
Uma coisa sucedendo à noite da constituição.
Tu de colher eu de xizato pela molhada Santiago à eucarese da fraternidade.
E que duas coisas entre mim se apertem com braços de todos os tempos não
gozados.
Os mortos levantando-se dos vivos e o silêncio nesses estados que são Deus
numa chuva de Graça onde há-de chover.
Tudo a caminho, tudo joelhos, tudo de Cristo e queixo na mão, na mãe, no
filho, no seminarista entesado, e isto actuando em mim nos trezentos pecados.
Quero as grandes impossibilidades! Pregá-las como polaroids ao chão
mijar-lhes para cima, xixi de mais de dois dias!
Arrancar Budas como borbotelhos das lanas del reys deste mundo!
Fazer o horóscopo de Cristo para ver se ele morre no fim!
Grande cena sem adjectivos...!
Execrar tudo até ao Espírito Santo!
Apiedar-me de Adão directamente por Deus e afundar-lhe a doutrina
que a revelação tem bicho desde a maçã!
Esconder Evas virgens às escondidas onde moram os enjoos de parto!
Viver por dentro a curiosidade como guizo, e o ror físico enfunar ao ventre
até que pela porta entre o primogénito da criação!
E será isto passar para cá a vida como quem funde com cuidado
enfiando-lhe depois um tampão!
E cravos vermelhos numa bacia do Ganges por um serão marial!
Por alianças e declarações de amor: um megalito tumular que nos engate em
5ª para estes abaciais ventos de fim!

...

Ah, mas o Almada é que percebeu tudo: é preciso ser satânico para ser tudo!
O Homem Branco a Grande Escarlate Kirios Hieron Abbadon Pleroma
Pneuma Agathós Tetragrammaton Bodhi Apollyon e Deus com os símbolos
que caiam aqui!

POR ISSO TUDO!

Irar!
Partir!
Emboscar!
Demolir!


Molhar o bico no sangue pelo escrúpulo da virilidade que a métrica está toda
errada!
Invadir em fogo aceso em enxurrada este psiquismo esgotado!
Por um banquete de impérios a celebrar-se por dedos e a arder-me na testa!
Um refrigério, uma saleta em anfiteatro para este ardor entre guerras, se faz
favor!
E já agora a vinda do salvador numa bandeja ao pequeno-almoço, servida com
mel
mas declinada em latim!

...

Namorar à distância com a forma perfeita de tudo: eis tudo!
Namorar nu à vista das coisas, entrar-lhes, destapá-las subir-lhes pelos pés
das camas, aos destelhados mais que tudo substantivando!
Ah poder sonhar-me a sós com a idade de domar tigres e leões!
E ter um ralo especial como bueiro para onde escoasse como cimento
esta grande obscenidade!
E Deus na unidade dos queimados do Esfinge Gorda!
E o leviatânico reverso exortando os fiéis com sucesso!
E as garrafas bebidas e o Pai Nosso Também!
E tudo acima a transcender e o transcendente ámen!
E as semanas santas como bolos frescos em montras triplamente iluminadas!
E a dormição da Virgem como restos de hóstia na minha língua:
um pão branco sem miolo e na côdea inteira a alma grega da festa!

...

E os doidos de Cristo?
E as rixas do Camões?
E o Senhor Roubado e os mosaicos da Santa Senhorinha?
E o banco do Antero?
E o ermo do Nobre?
E as orações do Guerra?
E a boca do Pascoaes?
E os urinóis de Henoch?
E as grandes mãos do Almada?
E a mística do Maria Lisboa?
E o meio-dia da Dalila?
E o matadouro do Luís Miguel Nava?
E o rosto sob a água do Daniel?
E o Ruy Belo na freguesia portuguesa do Cacém?
E tu Herberto tu?
E o corpo da Adília?
E a minha avó consolidada na pneumonia?
E tu Pessoa ou verdade, diálogo interno abrindo as comportas!
E o teu melhor amigo suicidado por ser gordo e não agradar à outra!
E a outra que por vizinhos teve os Ichabods da poesia por certo!
E nós na presença de tanta perfeição engordando a morte!
E tu! Tu lâmpada de sal himalaísta que foste o último a morrer mas morreste
afinal.

...

E a puta que parisse acontecendo-lhe em vez disso morrer.

...

E ir, ir sem préstito de multidão nem alma na frontaria, ir do mesmo modo despida como primavera finda em buganvílias até ao fim da estação, esgotar os planos físicos desta Verónica travestida, ir com as sensações surradas num aperto de gelo até ti poeta que desenrolas mistérios como mantas ao frio desta grande neomortalidade!

...

Ao grande naufrágio das formas por correspondência!
À grande noite do espírito destinada a ser real!

Ao poeta Oriente neste Ocidente mandado que é Portugal, etc.



Raquel Nobre Guerra (n. 1979), in Groto Sato (mais duas marchinhas) (2013). «Folheia-se este livro e dá-se imediatamente pela grande ductilidade formal que ele revela. A imagem gráfica das páginas oscila, ondeia, entre o poema monolinear (e mesmo univocabular) e o derrame triunfal por várias páginas, entre o infinitamente pequeno (o de um saber epigramático - curiosamente mais próprio de poetas em fim de vida -, não sentencioso, mas feito da constatação fulminante que abre mundos) e, na outra ponta, o infinitamente grande de poemas que ecoam Almada e Campo. É grande a diversidade de respirações, ritmos, fôlegos. Há poemas breves que poderiam transformar-se numa linha de sentido claro, e novelos densos de uma imagética e de um léxico deliberadamente estranhos, estranhantes, que  retardam a leitura e obrigam a ler com o dicionário ao lado. E há as remissões e os reenvios secretos, próprios da poesia que se assume como parte de uma tradição e convoca o que tem à volta e à mão - iniciais de nomes, citações, dedicatórias, epígrafes, latim e grego e outras línguas: pequenas mas frequentes marcas que criam efeitos de estranhamento que transformam esta poesia tão visceral, logo a partir do título, em poesia culta, erudita, não por acaso, não para épater, mas porque assim o quer e provavelmente tem de ser» (João Barrento, in Pela Porta das Traseiras, posfácio a Groto Sato).

1 comentário:

Diogo Almeida disse...

Fogo. Quase que fiquei com vontade de casar.