domingo, 7 de dezembro de 2014

ENIGMA TAVARES: TESTAR A TESE


Dois livros recentes de Gonçalo M. Tavares (n. 1970) ajudam-nos a repensar um edifício literário que vem sendo construído desde Livro da Dança (2001). No final de cada um deles, uma espécie de planta distribui por várias secções os famigerados cadernos do autor. Os Velhos Também Querem Viver (Caminho, Outubro de 2014) aparece ao lado de Histórias Falsas na secção Estudos Clássicos. Esta obsessão com a organização de uma obra mais caótica do que aparenta é reveladora de uma intenção arquitectónica sobre o texto, o qual deixa de ser organizado segundo padrões clássicos (romance, conto, teatro, poesia) para assumir novas designações (O Reino, O Bairro, Enciclopédia, Investigações…), mais pessoais e enigmáticas, que, na realidade, aproximam os géneros através de uma teia onde tudo se interliga. Toda a obra de Gonçalo M. Tavares, na sua diversidade, acaba por estar interligada, não sendo possível, ou sendo desaconselhável, lê-la de outra forma, interligada por uma espécie de linha poético-filosófica transversal a todos os géneros, aproximem-se estes mais da ficção ou da poesia, desta ou da filosofia.
Os Velhos Também Querem Viver transporta a tragédia clássica para tempo e espaço modernos, transporte no tempo e deslocação geográfica da tragédia Alceste, de Eurípedes, com variações formais onde se acrescenta ao texto original os elementos de uma actualidade meramente paisagística. Podemos dizê-lo assim porque, no essencial, o conflito humano mantém-se, à volta do homem a paisagem transforma-se mas o que há nele de verdadeiramente central permanece com uma perenidade assustadora. A tragédia, dedicada a Hélia Correia, autora de um extraordinário livro de poemas, intitulado A Terceira Miséria, onde estas questões já se colocavam sob prisma similar, tem agora por cenário a Sarajevo da década de 1990 em pleno conflito armado. Admeto é atingido por um sniper, mas pode ser salvo se alguém morrer por ele. Todos se recusam a trocar a sua vida pela vida de Admeto, excepto a sua mulher. Alceste, a mulher de Admeto, morre para ele ficar vivo, mas a consciência de Admeto não se conforma com a perda nem com as razões de seu pai, Feres, ter recusado dar a vida pelo filho. Era um homem velho, podia ter morrido para que os mais novos continuassem vivos. Feres defende-se: «Se os novos gostam de viver, os velhos também. E por que razão a vida de um velho valeria menos do que a vida de alguém que agora começa? (…) Não podes pensar que um velho é metade de um homem; um velho como eu é pelo menos dois homens, eu diria, pela experiência, pela sabedoria» (p. 56). O discurso é objectivo, nada tem de paradoxal, mas coloca à prova a resistência das teses. É esta dimensão inspectiva o que mais fascina nos textos de Gonçalo M. Tavares, textos de uma intensidade poética que muita poesia não consegue ter. Algo semelhante se observa no romance
Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura do Pai (Porto Editora, Novembro de 2014). Neste romance, uma menina com trissomia 21 está perdida no centro de uma cidade alemã no século XXI (o "seu século"). É encontrada por um homem que a vai ajudar a procurar o pai. A primeira palavra que nos surge com estrondo é a palavra “deficiente”. A deficiência tem  aqui o lugar do contrapoder. Ela opõe-se não só à normalidade, a uma suposta normalidade, como também à lógica, à ordem, ao Organon aristotélico que o autor de Uma Viagem à Índia testa recorrentemente e inverte e procura sabotar e experiencia. Marius e Hanna, as personagens centrais do romance, vão cruzar-se ao longo de quase duzentas páginas com indivíduos cujas características são objectivamente escolhidas e pensadas para uma inversão valorativa que confronta o leitor com a loucura (não exclusivamente mental, mas também a partir de anomalias físicas) das pessoas aparentemente normais e a naturalidade de uma menina com trissomia 21 que, limitada na sua autonomia e nas suas capacidades comunicacionais, garante uma certa espontaneidade aos desequilíbrios do pensamento: «Da janela da carruagem, vimos o fumo preto que saía de uma fábrica. Hanna disse que era bonito. E de um certo ponto de vista era: se olhássemos para a fábrica como simples produtora de fumo. Era provavelmente assim que Hanna a via» (p. 175). Reminiscência das fábricas de morte nazis, esta passagem sublinha de um modo acutilante a relação entre a realidade e o ponto de vista. Sobrevive uma sem o outro? Hanna, a realidade, sobreviveria sem Marius, o ponto de vista? Hanna tem consigo um conjunto de fichas que estabelecem um programa de aprendizagem para pessoas com deficiência mental. Fascinante, a forma como Marius se questiona sobre as dificuldades de uma pessoa normal para responder positivamente a algumas daquelas tarefas. A exigência dos desafios testa a normalidade, daí que o romance se desenvolva na base de conflitos entre o certo e o incerto, a verdade e a mentira, a lógica e o caos, a exactidão e a subjectividade, a matemática e o acidente. Mas estas linhas, que reflectem um pouco do que se vem passando no conjunto da obra de Gonçalo M. Tavares, não seriam suficientemente cativantes se não fosse inesgotável a capacidade do autor para imaginar situações onde as mesmas são (re)desenhadas com espantosa coerência e minuciosidade. A título de exemplo, digamos que quando uma personagem procura um Hotel num livro de Gonçalo M. Tavares ela não vai encontrar apenas um sítio onde dormir. Ela vai encontrar um Hotel onde cada quarto tem o nome de um campo de concentração nazi, um Hotel cuja arquitectura reproduz a distribuição desses mesmos campos no espaço europeu. Estes elementos parabólicos, acompanhados de personagens aporéticas e de uma escrita onde a própria pessoa do narrador se confunde, sem, no entanto, confundir minimamente o leitor, fazem de cada um destes cadernos estádios de desenvolvimento de uma poética geral, uma poética com um princípio fundador: testar a tese.

Sem comentários: