quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CORPO SANTO


Hão-de ser sempre misteriosas as razões que lançam no esquecimento poetas extraordinários, oferecendo a outros a glória da reedição, da recolha, da tese, da perpetuidade (tanto quanto possível na redoma exígua dos leitores interessados). O século XX português já tem os seus ícones, chamem-se eles Pessoa (primeira metade) ou Herberto (segunda metade). Outros há que vão resistindo à custa de esforços vários. Sophia e Sena, Eugénio, Ruy Belo, Cesariny, O’Neill. O problema não está em estes serem lembrados, está em outros, igualmente singulares e desafiantes, serem esquecidos. Ruy Cinatti (1915-1986) é, na minha modesta opinião, um dos poetas portugueses do século XX mais incompreensível e estupidamente ignorados, pelo que a publicação de Corpo Santo (Averno, Julho de 2014) constitui, por si só, um dos momentos altos do ano corrente no que a edição de poesia diz respeito.
Podemos distrair os leitores com traquitanas, com máquinas promocionais, com anúncios estrondosos de novidade onde apenas se vislumbra jogo de anca, mas não podemos, não devemos, ser cúmplices para com a mexeriquice que ameaça deixar na penumbra um poeta deste calibre. Mais estranho se torna o esquecimento quando Cinatti tinha tudo para ser um entre os maiores, desde uma biografia rica a uma obra que lhe fez justiça — com os devidos encómios críticos de gente credível, de Ruy Belo a Joaquim Manuel Magalhães. Sobre a vida, mais que não fosse seria expectável que interessasse o seu incorrigível nomadismo. Até por ser raro entre nós. Se Camões se aventurou em altos mares e Pessoa foi um nómada intelectual por excelência, não muitos terão saído de onde sempre estiveram, dentro de si próprios, ao “encontro inesperado do diverso”.
O primeiro livro, Nós Não Somos Deste Mundo, saiu em 1941 (dedicado a Hermínia Cinatti, mãe com raízes toscanas, falecida quando o poeta tinha apenas dois anos). Nascido em Londres, estudou em Oxford, partiu para Timor, foi metereologista, contrabandista, andou por Goa, Norte de África, Paquistão, para vir “apodrecer” em Lisboa já no final da década de 1960. Manhã Imensa (Março de 1984) foi o último livro publicado em vida, sendo nele notável uma vivência espiritual próxima de certa militância poética de tipo pasoliniana: «Comunismo — cristianismo: oposição. O poeta opta pelo cristianismo e envolve nesta opção o próprio comunismo, não sem ter deixado de apelar subtilmente pela ajuda de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro» (Manhã Submersa, Assírio & Alvim, 2.ª edição, Abril de 1997). Não nos espanta, pois, a Homenagem a Pasolini incluída em Corpo Santo: «Ó Pasolini, tu mexeste-me de verdade e eu deixo ficar tudo escrito. / Teu o meu Amor por Jesus Cristo!» (p. 78)
Em nenhum outro autor como Pasolini a conjugação do cristianismo com o comunismo foi levada tão a sério, sendo certo que, como dizia Jean Duflot, «o único partido que Pasolini escolheu foi o da ressacralização do homem, do homem cá de baixo, nascido da natureza e da mãe, e cuja assunção pode e deve dispensar toda a revelação» (in As Últimas Palavras de um Ímpio, Distri Editora, 1985). O mesmo processo de ressacralização parece operar-se na poesia de Ruy Cinatti, sendo por isso muito pertinente a escolha do título para esta “antologia de poemas volantes”. Escusada era a explicação de Manuel de Freitas sobre o título quando é ao próprio poeta que vamos buscar esse entendimento, nomeadamente em versos de Depoimento«Em cada baiuca em que entrares aí é a Casa de Deus… / mesmo que só lá estejam miseráveis publicanos como eu… / e então… que festa grande… festa redonda… o Mundo… encimado pela Cruz e na Mão de Jesus… o Magnífico… / a dar esmola aos pobres pelas mãos de um pecador…» (p. 37) — e nesse magnífico poema da página 52:

FADO

A minha atracção pelos marginais
acorda-se com o meu signo, o dos ambíguos maravilhosos Peixes.
Um aprofunda-se, outro, à superfície
das águas pestaneja
meio adormecido e sonhador…
e sendo o amor ubíquo eu sigo os dois
conforme a total necessidade e as demais
oscilações contrárias no coração dos homens,
não esquecendo a atracção que os marginais por mim não escondem…

12.3.77
 
Convém esclarecer a origem dos poemas coligidos, de forma e temática diversas, embora singularmente homogéneos no tom com que perspectivam a realidade: «Ruy Cinatti distribuiu, nas décadas de 70 e 80, centenas de poemas policopiados. (…) Os poemas policopiados em folhas volantes que Ruy Cinatti tantas vezes fez circular pelos bares do Cais do Sodré ou pelos cafés do Chiado chegaram também, naturalmente, a vários amigos seus. E daí resultou, em 1981, uma antologia anónima mas consentida pelo autor: 56 Poemas (Lisboa, A Regra do Jogo)» (Manuel de Freitas, Nota Introdutória, pp. 5-6). Na realidade, os 56 Poemas, reeditados pela Relógio D’Água em 1992, foram agrupados por João Miguel Fernandes Jorge. Tanto nessa como nesta antologia encontramos alguns dos melhores momentos que a poesia de Cinatti conheceu, quer quando adopta formas tradicionais, quer quando liberta o verso de métricas rígidas. A actualidade política, olhada com desencanto, é satirizada com um discurso tão verrinoso quão descrente das estruturas do poder. Mas o que mais impressiona é a preponderância dos símbolos numa poesia aparentemente circunstancial, num diálogo persistente com a tradição e com a cultura que questiona o presente e o deflagra com situações onde fica claro o definhamento dos homens. Dos homens ou da espiritualidade. Por vezes, estes poemas interpelam-nos acerca da perda do assombro e da ausência de espiritualidade. São uma espécie de lamento místico mas com os pés na terra, essa é a sua maior força.  Ou então são a súplica do nómada atracado, comovente apelo, inigualável dor:

ANTI-ODE MARÍTIMA

À memória de Álvaro de Campos

Ó barcas de velas altas, ó horizontes,
carreiras de navegação para todos os portos!
Ó brumas matutinas quando a escuna
se espuma sobre baixios perigosos!
Ó ilhas, edénicas fortunas
de aventureiros fortes, audaciosos!
Ouçam o meu apelo, ó sirenes que ecoam
nos meus ouvidos os mais fundos avisos!
Eu sou o que não sou, sendo improviso
como um cego ao subir passeios,
mas possuo, ó fumo dos navios,
da minha condição, visão informe!
Ouvide a minha súplica, atendei-me,
levai-me convosco à aventura!
Que eu ouça o grito das gaivotas
e o marulho nocturno: vagas múltiplas!
Meu coração tropeça. Tenho frio
e calor d’encontro a vós, senhores
dos mares, dos poentes espantosos:
derrame de luzes e de vozes!...
Sou tão vosso como dos navios
aos altos mastros içadas as adriças
dos sonhos que vos habitam dia e noite,
com sereias, polvos, cachalotes!
Tenho de mim certezas, apenas falta
vosso convite alegre, insinuante
meneio de cabeça, olhos distantes,
mas tão junto a mim como um afago!
Ide, parti, levai minh’alma
já que o corpo espera, espera, espera!...

30.6.83

Ruy Cinatti, in Corpo Santo, org. Manuel de Freitas, Averno, Julho de 2014.

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