sábado, 5 de julho de 2014

SABOTAGE


Num breve ensaio intitulado A Invenção da Teatralidade (Deriva, Novembro de 2009), Jean-Pierre Sarrazac afirma que «o texto tem obrigatoriamente no seio da representação uma função e um estatuto distintos dos das outras componentes… Em primeiro lugar, por defeito: o texto é o único elemento que deixa de existir por si próprio – enquanto texto escrito – no acto da representação; ele transforma-se, metamorfoseia-se, podendo mesmo anular-se durante o tempo em que se manifesta… Depois, por excesso: o texto é invasivo de uma forma muito diferente de todo e qualquer outro elemento presente em cena – através dos corpos, das vozes, do espaço, e mesmo no espírito dos espectadores que podem dele ter tido conhecimento antes da representação» (pp. 37-38). Independentemente deste conhecimento prévio, podemos olhar para o texto dramático já como uma espécie de palco sobre o qual encenador e actores exercerão a sua liberdade interpretativa. Ao contrário do texto poético, que coloca em relação directa autor e leitor através do poema, o texto dramático pressupõe entre o autor e o público alguns intermediários: encenador/actor. Esta relação talvez condicione a escrita, na medida em que, consciente da complexidade relacional do seu texto, o dramaturgo talvez parta para a escrita já na perspectiva de uma representação (o que é diferente de partir para a escrita com o propósito único de vir a ser lido). Apoiando-se no filme This Land is Mine (1943), de Jean Renoir, para a concepção de Sabotage (Douda Correria, Junho de 2014), Miguel Castro Caldas (n. 1972) oferece ao leitor, o primeiro dos “públicos”, uma possibilidade de enquadramento que pode simplificar a leitura. Está implícito neste processo uma sabotagem do próprio texto, o que faz do livro de Castro Caldas um curioso objecto de reflexão sobre os mecanismos da construção dramatúrgica. O leitor menos preguiçoso tem a possibilidade de satisfazer a curiosidade vendo o filme (acessível, desde logo, no Youtube), embora não se imponha que o veja para entender o texto. Sucede que vendo-o, a leitura saboreia-se com outro gosto: oferece-se à imaginação um cenário onde as tensões se intensificam, podendo inclusive os pormenores mais datáveis ser ultrapassados por uma rede de associações que actualizam a narrativa à luz dos nossos dias. O tom denunciadamente propagandístico do filme de Renoir não é desrespeitado, embora readquira uma força que a raiva do leitor actual, por certo também ele vítima de falsas acusações, alimentará com aquele sentido de injustiça onde o réu que é vítima vai descobrir a coragem que desconhecia possuir. Quem é Albert Lory? É um professor de liceu que anda pelos quarenta, vive com a mãe, de ar cândido e algo desajustado. Tem uma paixão, Louise, noiva do empresário George Lambert, colaborador da força ocupadora (naquele tempo, os nazis), irmã do resistente Paul Martin (que foi denunciado por Lambert). Lambert aparece morto e as suspeitas recaem sobre Lory. Crime passional? As interrogações sobre a justiça, e a forma como o poder exerce sobre os cidadãos os seus padrões de rectidão, percorrem o texto à superfície. Miguel Castro Caldas esquiva-se a uma replicação das teses anteriormente afloradas pelo filme de Renoir, preferindo recentrar-se noutras dimensões do conflito: «esta coisa de se dizer sagrado é o amor, basta googlar, quatrocentas mil entradas e em inglês cento e dezoito milhões. sagrado o amor, sagrada a amizade, sagrada a propriedade, sagrado o matrimónio, mas o amor pode ser uma coisa terrível, pode ser uma coisa criminosa, a começar no amor de mãe». E o resultado é uma explosão da personagem de Albert Lory, que não é apenas vítima de uma falsa acusação nem de uma situação fortemente condicionadora das acções individuais, mas também vítima de si próprio, de trazer calada nos calabouços da resignação «uma frase daquelas que se gravam na pedra / a sabotagem é a única arma que resta a um povo derrotado». Já não lhe interessa a acusação de que é vítima, pouco lhe importa se julgam que matou ou não. Tem a possibilidade de sair ilibado mas não quer, prefere exorcizar-se perante o seu público, recusa-se «a ser bombeiro da sobrevivência». Albert Lory quer viver e, neste tribunal, readquire, de facto, uma vivacidade estonteante. A defesa de Albert Lory, apesar de basear-se no filme This Land is Mine, tem muito mais que ver com a Defesa de John Brown, de Henry David Thoreau, porque o que aqui está em causa é a consciência individual daquele que, isolado perante o poder, sabe o que o espera se desafiar a lei: o desprezo e a solidão são o imposto a pagar pela consciência livre. 

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