domingo, 22 de junho de 2014

FACA DE INCÊNDIO


1

Nós, quem: a respiração suspensa

A casa era na praia uma coincidência
feliz: o homem e a mulher a comer a areia
de mãos enegrecidas e o peito a cuspir ar.
de facto nunca foi assim. começando pelo
leite: era branco e devia ser fervido. ferviam
o leite, coando a luz pela janela fina.
por certo vinha de um centro de madeira
mais recôndito que os livros na janela, o peitoril
a derrubar as mãos que entre os dois.
Às vezes era excessivo o que diziam, quer dizer,
havia sangue manchado de memória, árvores
que nunca mais se esqueciam de crescer: Prosa!
Mas também era verdade que algumas palavras
saíam já da sua boca com a direcção do vidro
e que nessa altura um riso mais leve que o mar
apareceu a rodear a porta.
Não sei se quando a noite começou a esquecer
eles ainda usaram as mãos que entre os dois.
Mas da primeira vez que não precisaram de dormir
a casa estava vazia e
desaparecera.
O ar que lhes saía dos olhos ferveu o leite
que derramava até ao cravo das mãos.
E era no coração do átomo.

2

Primeira explicação do fim

Depois traziam mais: de tarde
a lã a chegar à cozinha acelerando
as janelas, o sono a fluir nas pás
dos dedos e ao jantar- descascar as raízes,
os tubérculos a parar na voz, finalmente
a luta ao feixe da mesa com os caules abatidos,
os estames derrubados, mundo tributário,
mundo tributário que desliza, eles (decerto)
com os documentos a pender da cauda, triste
sina, não te levantes, mensageiro,
o director pôs Jesus Cristo a gerir os ciclones,
vindima suave, baixas só as estritamente necessárias.
Depois -disseram- era preciso descrever
a posição da casa, arranjar-lhe um destino.
Memória queimada, mulher de louça, tu,
os circuitos procurando a nossa morte.
Disse procurando a nossa morte, e as palavras
iam e vinham no rasto do café e do jasmim.
Da madeira, do pão, por causa do amor.
Calei-me. Do forno. Da mesa.
E de súbito o vento, acontece assim:
As nossas mãos na praia, tacteando a cabeça.

3

Primeiro antepassado: a criança cega

Era no verão que ela morria mais.
A culpa era da mãe quando lhe disse: salga
as tuas mãos, filha, não vá o mar desaparecer.
E ela meteu as mãos no mar e deixou-se ficar,
de cara ao ar de agosto e zelo em plena consciência
pela areia. Claro que estava predestinada
e decerto veríamos o impulso súbito que não
cabe na estreiteza do relato. Chamavam-lhe poder
e caíam de borco julgando transformar-se em
conchas de absinto. Mas isso era antigamente.
Escreveu-se um livro reduzindo a história da cidade
a um feitiço eleito, o que despertou a fúria dos vizinhos.
As mulheres começaram a usar luvas e a inspeccionar
o nível das águas todas as noites, antes do jantar.
Ela aprendeu a roubar e tocava harpa com vergonha
dos ouvintes que subiam às casas adjacentes
para ouvir. Mas ninguém sabia que ela já não estava
lá e que era o orvalho que crescia do lado do mar
que continuava a retirar o sal.
Quando a manhã cegava a duna
ela rompia os dedos todos e encostava
a cabeça.

4

A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos

A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos.
Era fria, de malas vazias a remendar a base
e dissemos pedra sobre pedra sobre pedra.
morreram: os meus amigos vinham jantar
com a terra. E não havia nada para lhes dar
a não ser a máquina de erguer janelas rente
aos ombros. Aquecia-se água, descia junto à pele
o lume: apertando os ossos, imaginando o respirar
mais fino. As colheres eram pequenas fantasias
do sono, animais que abriam muito os olhos
junto à fome. Os antigos comunicavam sentimentos-
o método da penumbra que escapara à melancolia aberta
por fora. Mas por fora já não havia nada:
e nós amámos a casa como um osso
no interior da
pedra.

5

Destroços: o simulacro entrando pelas mãos

Mas nada mais. Havia a questão de respirar,
salvando os bichos sem poder suficiente nas pernas.
Noutro tempo faziam o mesmo, sempre dispostos
a ceder o seu casulo junto à base. Ardeu. Era pequeno
mas a culpa não cabia. Eles abrigavam-se nas axilas,
pediam-nos para abdicar do sono. Ficávamos de braços
abertos por causa do aço, o frio engatilhado
nas formas de consolo: de manhã era mais vasto andar.
Sabiam plantas ávidas do álcool no carrossel de areia-
por exemplo, agora que o tempo chegava cedo aos guizos
e o cabelo rastejava. E as palavras saíam truncadas, e quiseram
marcar-nos dizendo assim: vê, tens aqui matéria pura,
podes construir um canal estável, aprender a falar sem
traduzir o sangue [- Claro que estes eram os políticos.
As suas bocas começaram a crescer e de cada vez que
as tentavam abrir uma parte do seu corpo desaparecia.
(Um dia o presidente convidou-os para jantar
e comeu-os a todos, acabando por asfixiar numa esmeralda
tépida.)] Mas nós não queremos saber do destino.
Não se vendem ossos, os meus amigos têm asas impuras.
Um dia vamos desproteger a barra, seguir os barcos
pela duna. Espalhar os livros pelo ar adorme-
cer.

6

História anterior do medo

Era com as mãos que ela no início segurava
o volume do quarto, a distância de cada perfil
ao rasto da parede. Quando o tempo mudava
as sombras pareciam-lhe mais altas, quase a tocar
os joelhos. Uma lenha rachou cedo pela fonte.
Mas um dia pôde deslocar as cordas da garganta
sem abrir os olhos, ou melhor: houve um silêncio
que do arco do tecto em breve lhe suspendeu
o queixo até o levar. E assim os dedos chegaram
ao cesto da vindima embutidos em suor, afastando
a mobília. as criadas que saíam do quarto e casaram
sem saber. Foram pelas florestas a repartir o espaço
da melancolia dela, acumulada na poeira das patas,
dos poemas. Nesse país continuaram a escutar
esta mulher que lentamente se dissolve, longe de nós, 
imortalizada num ânus de luz sacudido pelo fim e pela
chuva.

7

O sonho: a escada aos pés da alegria

Ela queria dar maçãs mas sem saber porquê
e caber no chão e esquecer-se do seu nome
e de crescer. depois, ela queria ter um país
a rebentar na boca, um amante ciumento
a respirar cheio de medo. e poder fingir
que o esquece e queimar-se muito
nas palavras que lhe diz.
havia de mostrar-lhe as mãos cinzentas
e de cuspir o seu amor na água podre
dos caminhos. e havia de matá-lo,
com a mão de aço na coroa
da cabeça e o sangue a florir nas ruas de ver-
melho, arrastando poemas, candeeiros,
a cama, o lençol branco, a mesa da cozinha,
um nome da alegria, o cesto para o pão,
e haviam de chegar à mesma casa, árvore, país,
corpo, sonho, vida, poema, como uma fonte
que regresse à própria boca
ainda com mais sede.

8

O diabo tem a mesma cara que tu

Era branco cor do leite quando temos
medo. Medo: quatro agulhas nos olhos
à entrada da árvore, os tecidos regenerando
o ar da praia e à luz fosca que segue a perda
da memória. Eles escondiam-na nas pedras,
até na água, homem e mulher - os peixes agitados
pelo movimento da duna, cidade - altíssima!
trabalhavam na cozinha, construindo cedo-
recuperando a tristeza, segando os legumes.
tacteando- à procura do olhar que retomava
o ponto de entrada, as mãos distribuídas pelo pão.
vamos ver as plantas que pesam ainda sobre a mesa,
as facas, pedaços cortados pela flor quando a terra
abriu, quem falou de alma? não era alma, usa
o meu nome. Este sou eu, Esta sou eu, Eu sei,
Eu sei. Mas a alavanca que os recuperou da queda
dispunha os mesmos dedos pela duna.
Quiseram deitar-se nos lábios das urtigas-
Permanecer.

9

De uma carta encontrada (quando tudo se perdeu)

"e foi assim que tudo se tornou demasiado,
os teus ouvidos seguiam a respiração dos que
ainda mexem na memória, a margem fora
retirada, os papéis ficaram, a roupa gravada
com o código dum olhar ferido a tempo para outro
sonho de acesso reservado. ainda os cheiros,
a calor das máquinas, a sensação de algo que
suplanta o que nós somos e a névoa a retirar-se
com saudade à flor do dia calmo. não sei se choramos,
se mentiste, humana perdição do amor e frouxa
luz. que adianta morrer se não é agosto que nos falta,
a tarde mais ao fundo da nossa mais que louca
fantasia? os cães desesperados pedem-nos para
entrar, minha amiga dos vestidos, de todas
as humanas tentações, agora é a tua vez
de acreditar na mais medonha face da 
alegria"

10

O rei que chegava para jantar

mas todos os dias regressava.
todos os dias a boca junto ao mar
regressava e as tuas mãos empurravam
a areia por dentro da camisa. pediam-lhe
que se escondesse junto ao espaço,
que da próxima vez prometesse não
voar. Da terra os animais cansavam-se
à passagem da duna. As plantas queriam
que ele se indignasse; os cactos, sobretudo,
sabiam que a seguir à fúria vinha
sempre o sono.
era depois que o tédio se tornava altivo
e o vidro da janela afundava pelo eixo
da casa, com o pão deixando os dedos sós
até ao bafo. nesses dias era impossível morrer.
as pessoas não sabiam e passavam com a casa
dele às costas. um dia vieram à procura
do seu corpo mas uma espécie de felicidade
esqueceu-se de os avisar: três sacos esperavam-nos
à entrada da porta- ossos no primeiro, a pele no
segundo e no terceiro, vazio, escondera-se o rei.
Quando levaram os dois primeiros sacos
e deixaram o último, já o ar tomava há muito
as mãos do seu reino, que nunca teve fim.

11

De como às vezes a tarde se aproxima, sempre

Se não queres morrer, morre: Em cada coisa inteiro
um morango respira, o teu irmão
de sangue.

Rui Costa (n. 1972 - m. 2012), in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (2005). A poesia de Rui Costa reclama uma releitura permanente, devendo-se tal ao efeito de provocação das suas metáforas vivas. A estreia, sublinhada com a atribuição do Prémio Daniel Faria 2005, revelou um poeta onde os universos da imaginação e da memória se interceptam nos cruzamentos de uma linguagem fortemente alegórica. Sintaxe informal, versos elípticos, distribuição aparentemente aleatória de vocábulos, conjugam-se com uma ironia apurada sobre os paradigmas universais. Rui Costa subverte, embrulha, vira do avesso a tradição, retira solenidade a grandes temas como o amor, a morte, a liberdade, preferindo, antes, miná-los com a impulsividade das paixões. Mas fá-lo num contexto referencial onde o leitor nunca se sente por completo abandonado, largando pistas que permitem a leitura usufruir com espanto de uma paisagem onde as pedras respiram e as flores são dotadas de uma animalidade que parece expulsa do humano, já pós-humano, homem rasurado pela tecnologia poder, homem-sombra-de-homem. Maria Alzira Seixo falou de «ficções poéticas, em que o amor se opõe à tirania, e a sombra de pavor e conivência que cobre a vida é iluminada por figuras de redenção. Numa escrita levíssima, que parece nem ter apoio no papel…» Esta leveza, que se pressente na sequência Faca de Incêndio e encontrou desenvolvimentos no romance Resistência dos Materiais (2008), não evita, porém, uma profunda exigência quando nos aventuramos nos interstícios das imagens sugeridas. Aí, esta poesia adquire o peso aterrador de um retrato único, o retrato dos (belos) monstros produzidos pela ciência com o alto patrocínio da cultura política ocidental.

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