terça-feira, 18 de março de 2014

ODE DO AGRAVO GERAL


Conspiração de anónimas sobrevivências,
Uma estátua
É onde a ingenuidade se compensa.
Para tal
Tanto serve o herói que podia ser santo
Como o santo
Que podia ter sido coisa nenhuma.
Grinaldas
São ocupações que se procuram
A fim de reconciliar a mão esquerda que quer estrangular
Com a mão direita
Que quer estrangular.
E os jardins sempre repletos de homenagens...
Cada flor é a biografia dum herói que morreu pela Pátria.
Os amantes são o acordo de ambas as partes
Com honra para a causa comum que se chama noite
Ou dia
Ou noite
Ou dia.
E ninguém percebe que essa harmonia
É uma troca de cartões de pêsames
Por uma morte que se deu
Ou que se vai dar
E que se espera sem revolta.
Apesar de tudo estamos aptos a fazer a revolta
Como quem faz escalas num piano alugado.
Onde estão as bocas dos profetas
Sensíveis nas raízes?
Se chegaram a florir
Nenhuma pétala articulou uma sílaba dos seus nomes
Para formar a corola do mito que faltava.
Se chegaram a morrer
Nenhuma morte nos elucidou sobre o nosso desgosto ou a nossa alegria
E assim tivemos de continuar indiferentes.
Há coisas muito mais importantes
Como contar de um até dez
E de dez para trás.
Porque as histórias só têm uma moral quando chegam a ser contadas.
As outras ofendem a inocência das crianças.
Os sacerdotes irão trocar estas verdades
Por outras verdades correspondentes
E ainda receberão troco.
Será o grande dia para os que pedem à porta.

Bem entendido
Que estamos todos muito satisfeitos com a Humanidade.
Se ela é uma abstracção que nos convém
Visto que constrói por fora
A insularidade connosco concebida por dentro!...
Mas por que razão
Sempre que plantamos uma árvore
Nasce um sapo em vez duma árvore
Ou o contrário
Em vez de qualquer outra coisa?
Somos na verdade exigentes
Em querermos comparar-nos aos soldados
E os soldados aos professores
E os professores aos cangalheiros
E os cangalheiros aos dentistas
Que são pessoas responsáveis que vão passar fora todos os fins-de-semana.
É injusto andar-se para aí a falar mal dos ladrões
Quando todos temos casas para serem roubadas.
Quando todos somos pretextos de ladrões.
Pior do que esta ingratidão
Só a ingratidão dos ladrões que não nos roubam a casa.
É certo que há evidências
Como superfícies que o sol doura.
E há o nome de Deus
Para que ele nos dê o nome de homens.
E há o nome de pássaros
Que se dá aos homens que trazem a fome pendurada no bico
E nem a engolem
Nem a deixam cair.
Nem mais. Nem menos.
O crime perfeito.
Se não fosse perfeito não era o crime.
E se não houvesse crime?
Chegaria na verdade a haver perfeição?
Nenhuma pergunta ficará sem resposta
Porque ninguém quer passar por ignorante.
Eu própria
Fiz este poema que não completei
por excessiva paixão da sua forma:


          «Nosso Senhor rosa final
          Do meu tormento em linha recta!
          Do Teu modelo em lodo e sal
          Te ofereço a seiva ritual
          Da minha veia mais aberta.
          Eu sou a Nossa Senhora
          Das sete luas mortais
          Que derretem Teus sinais
          Nos segredos e nas horas...»


Reticências deste poema...
Perturbação visível de olhar marítimo
Sem rosto de marinheiro para se encaixar.

Dum lado a gare.
Do outro a natureza.
Carcaças de navios no limiar do naufrágio que nunca se dá.
O que quer que seja
Verticaliza-se no âmago do vazio.
Todos trazemos esse espinho
Cravado onde não dói.
Recebemos dos mortos a encomenda de cantar a vida
Para defender a sua área
Da invasão dos suicidas.
Recebemos a encomenda de nós mesmos:
Fraude involuntária da psicologia geral
Concretizando medo
No nosso fantasma particular.
Mas há o heroísmo das anedotas
Como há domingos
E há a cantata dos piqueniques
Neste coro singelo de pública imoderação:

          «Abandono-me à paisagem
          No verde que lhe decoro.
          Que brisa moldou a face
          Da outra face que ignoro?

          Rosa pétalas de lume
          De que fogueira apagada?
          És a forma do ciúme 
          De não prenderes o teu nada.

          Não há mais nada que a noite
          Que é noite não sei porquê.
          Espelho partido em astros,
          Reflexo só do que é.

          Tudo se passa ao contrário
          Do que o sonho representa.
          É o enredo voluntário
          Que o coração nos inventa.

          É o pacto da vigília
          Com as esquinas dos acasos.
          Uma esmola feita à morte
          Transbordante em olhos rasos.»

Tudo ficou como dantes.
A percussão do violino.
É tudo ficar como dantes.

Um homem que se descarna para ser poeta
Sem fazer nenhum pacto com o diabo.
Há sempre a música de não haver um tema
Para os poetas conhecidos como tal.
Olham uma árvore
Vão a um enterro
Ou à força de tanto cantar
Acabam por achar um poema.
São oportunos e persistentes
E quando dizem que uma flor
É um flor
São tão honestos e tão categóricos
Como qualquer homem que vê uma flor
E a descreve com palavras diferentes.
A relação do poeta
Da música
E da flor
Constrói uma harmonia
Como uma coluna ou uma estátua
Nimbadas de glória exterior.
E eu
Que troco o nome de todas as coisas
Porque as coisas que têm um nome
Estão afogadas na sua imagem mais finita
E perceber o erro da evidência
É descobrir que Deus é Deus
Porque recusa uma aparência?
E tu
Que da própria memória esquecido
Recordas em cada horizonte
Só a memória de ter sido?
Chegaremos um dia a saber se éramos nós
Tu
E
Eu
A gare do outro lado da natureza?

Oniricamente continuamos insatisfeitos.
Dá excessivamente para a compreensão do sonho
A porta da vigília.
O êxtase do lírio
É o eixo da teoria
Em que esfericamente nos vamos explicando.
Sempre até onde recomeça a explicação.
Livres pássaros da verdadeira era exilada na garganta
Estilhaçando a nossa voz em múltiplas palavras!...
Flor aquática à tona do meu próprio silêncio
Pudesse eu ser
Só cimo suspenso
Do fundo mudamente demonstrado em superfície...
Consequentemente
Uma rosa
Incessantemente fabricada pela
Nossa vontade.
Uma rosa!
Com que escamoteamos
À nossa natural subida
Até tigre
A dimensão da inocência.

El-Rey
E o país que se prepara para esperar El-Rey de sobrecasaca.
Foi o dia em que enterraram D. Sebastião.
D. Sebastião sem El-Rey.
Ficou o El
E ficou o Rey
E vestiram ambos de sobrecasaca.
O mistério tornou-se grave
A fim de evitar o remorso das coisas quando mistério
Reabilitando-as pela gravidade;
A fim de que não sobeje nem um milímetro de mundo
Quando medido pelo nosso corpo
Premeditadamente cadáver;
A fim de operar pela mágica dos espelhos
Uma síntese aplicável
Dos nossos vampiros sem aplicação.
Mas há o tempo que tem cabelos
Onde pomos uma flor
Para se parecer com um rapaz ou com uma rapariga.
E há a noite que tem seios
Onde chupamos o leite das estrelas.
E há o dia que não tem nada
E que cada um quer para si.
..............................................................................
De todas estas ausências fiz o homem:
A tristeza que fica das coisas que se vão.
Eu
E
Tu
Reminiscência do que podia ter sido
Se não fôssemos mais do que exclusão.

Natália Correia (n. 1923 - m. 1993), in Dimensão Encontrada (1957). Escreveu ensaio, romance, poesia, organizou antologias. Com uma obra poética extensa, não tem merecido da crítica e da historiografia oficiais especial atenção. A personalidade polémica explica, em parte, a exclusão. Chamaram-lhe tudo quando deviam ter-lhe chamado apenas poeta. A estreia deu-se em 1947 com Rio das Nuvens, livro ainda distante da voz mais valiosa. Sátira e erotismo contrastam com a linguagem hermética e as referências cabalísticas de grande parte da produção reunida em dois volumes com o título O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1993). De uma coragem cívica ímpar, afrontou preconceitos e estereótipos num país ainda hoje assaz reverencial. Sofreu as consequências, ora censurada pelo discurso oficial, ora alimentando ódios entre os pares. Mas tamanha controvérsia também fomentou admirações desmesuradas. Importa sublinhar, antes de mais, a pluralidade de discursos na sua poesia, a inclinação surrealista, o sentido pagão do poético, uma noção alquímica da palavra que a levará a dizer: «não sendo escassas as balas que, em poemas, disparei contra a univisualidade do mostrengo das coacções fascio-puritano-pirosas, não me faltando também no arsenal as que estavam a pedir certas peneiras autoritárias com cravos de Abril na fala, não foi pelo manual de um neo-realismo, com o qual aliás sempre embirrou o meu duende literário, que me fiz atiradora». 

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