sexta-feira, 21 de março de 2014

NÃO LEVASTE PEDRAS E EU DURO

Para o Rui Costa


Embora distes mais da minha margem
com esta multidão de luzes no céu camponês,
não te penso nem busco menos, ou porque
planto jasmim e semeio bagas e carrego terra
numa pá desde a ribeira ao quintal, vingam
coisas que vivem. Disseste que virias mas
aqui o ano passou sem notícias, fiz
um voto por ti, atirei a espuma à janela.
Propuseste também fazermos um pacto
de azeite numa lua ou lagar em sangue, não
lembro bem, apreciavas trocar as figuras
sentimentais, comentei até essa conversa
em que não vi nenhum fim especial
e apenas me deixou alegre pois virias eu
estava talvez não tão atenta mas foi bom
sendo incerto o que aconteceria a seguir
- e mil vezes aceitar, mesmo que contrário
ao investimento posto na ideia de amigo
ou até algo mais afim ao outro lado da alma,
avesso ainda assim à perda que é ficar
só com este real irremediável - tu nem
remetente deixaste para uma chave
que não tinhas outro sítio onde enfiar,
mas nos olhos ou ao ombro uma banda
negra, ouvias quem sabe estrídulo sopro seria
eufórico ou sobrenatural no fulgor de um
tímpano a perder de riso o rio, mas não
vale encobrir tantas vezes a morte
de muitas palavras, e afinal tu crês,
o que há além do superficial talvez seja
mais que fundo, mas só fundo repito é
onde estão os que ficámos e eu não sei
que tempos, porque não chove, demora,
com as cheias, a tranquila ascensão outra vez.
Queria pedir-te, como antes fazias e eu
vinha, uma visita em duas linhas neste estilo:
não se está mal mas não corre como eu queria,
se cá estivesses sempre parecia mais normal.

Margarida Vale de Gato, in Cintilações da Sombra 2 - antologia poética, coordenação de Victor Oliveira Mateus, Labirinto / Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 61 - 62.

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