segunda-feira, 24 de março de 2014

MY DARLING CLEMENTINE (1946)


My Darling Clementine/A Paixão dos Fortes (1946) ocupa um lugar especial nos westerns produzidos durante a década de 1940. Desde Stagecoach/Cavalgada Heróica (1939) que John Ford (n. 1894 – m. 1973) não se dedicava ao género, abrindo com este filme as portas para uma década de ouro onde às aventuras dos heróis do Velho Oeste foi acrescentada uma perturbadora fragilidade humana. My Darling Clementine parte de um acontecimento real que faz parte do imaginário norte-americano, o tiroteio que opôs os irmãos Earp, entre os quais o mitológico Wyatt Earp, à família Clanton. Já aqui falei de Gunfight At TheO.K. Corral/Duelo de Fogo (1957), obra onde John Sturges (n. 1911 – m. 1992) procurou recriar esses acontecimentos com maior veracidade. O título do filme de Ford sugere algo mais para lá de uma mera reconstrução histórica, sendo muitas as liberdades tomadas no decorrer da narrativa.
Clementine (Cathy Downs) é uma jovem mulher que aparece em Tombstone à procura de Doc Holliday (Victor Mature), indivíduo de boas famílias, bem formado, cujo vício no jogo e doença (era tuberculoso) o afastaram da humidade doméstica para o fervor selvagem. Tornou-se amigo de Wyatt Earp, combatendo a seu lado no tiroteio de O.K. Corral. O filme parece ter, deste modo, duas partes, delineadas pela chegada de Clementine à cidade. Há um antes e um depois desta aparição, a qual obrigará Doc Holliday a confrontar-se com o seu passado e Wyatt Earp com o seu presente. Numa das cenas finais, Wyatt (mais uma magnífica interpretação de Henry Fonda) pergunta ao barman de serviço se ele alguma vez esteve apaixonado, ao que este responde: «No, I’ve been a bartender all my life». O apontamento pode parecer anedótico, mas carrega um peso dramático no contexto em que é dito. Wyatt estava apaixonado por Clementine, ex-mulher daquele que era agora o seu melhor amigo: Doc Holliday.
O duelo tantas vezes iminente entre ambos desloca-se de um lugar físico para o terreno psicológico, penetrado pelo realizador com ambientes e situações onde parece estar a ser julgada permanentemente a cumplicidade entre as duas personagens. Posso estar equivocado, mas não me recordo de outro filme de John Ford onde o close-up seja recurso tão recorrente para sublinhar a dimensão psicológica das personagens. Além dos três actores acima referidos, há que mencionar Linda Darnell. Actriz com um final abrupto – morreu durante um incêndio quando tinha apenas 41 anos -, desempenha aqui o papel de Chihuahua, a amante de Doc Holliday. Ward Bond, actor fetiche de John Ford a quem já me referi várias vezes, é Morgan Earp, o mais velho dos irmãos Earp. Reencontramos igualmente Walter Brennan, desta feita no papel menos simpático do pai da família Clanton. Outro velho conhecido é John Ireland, que fez de Bob Ford em I Shot Jesse James (1949). Este elenco permite ao realizador apostar no desempenho dos actores, podendo até ser interpretada como homenagem a inclusão no argumento da visita de um actor à cidade onde decorre a acção.
A sequência oferece contrates tipicamente fordianos, comédia e tragédia equilibram-se sobre o ténue fio civilizacional que então caracterizava o Oeste. Granville Thorndyke (Alan Mowbray) é o pobre actor de serviço numa cidade onde a sensibilidade dramática dos cidadãos se manifesta mais pelo gatilho do que pela boa educação. Retido pelos irmãos Clanton no saloon local, é obrigado a divertir as hostes. Tenta recitar William Shakespeare, mas o famoso trecho do Hamlet não converte a insensibilidade poética do abrutalhado Ike Clanton. Salvam-no de pior destino a nostalgia de Doc Holliday e o espanto de Wyatt Earp, figuras onde se pressente um fundo moral que escapa aos demais. Nas suas diferenças, é isto que os une. Para que conste, Clementine ficará na cidade. E o seu nome, que Wyatt diz ser belo como nenhum outro, invoca uma esperança fundamental para a sobrevivência daquelas pessoas. Ouvi-lo é como ouvir, pela primeira vez, os sinos da igreja num local onde nem ao barbeiro um homem podia ir descansado. Ressonância religiosa, esta metáfora, chamemos-lhe assim, da civilização desabrochando em terras áridas é, talvez, o único conforto que resta a quem sabe nada ter a perder. Clementine ficará para construir uma escola, para ser professora, para educar as crianças de Tombstone. Esperemos que se tenha saído bem.


P.S.: talvez ainda se recordem de Carroll Baker, a instrutora que partiu com os índios no épico Cheyenne Autumn (1964). Eis o destino da civilização tão bem desenhado pela cultura popular.

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