quarta-feira, 4 de setembro de 2013

HOMER & LANGLEY

 
 
Nos states da primeira metade do século XX, os irmãos Collyer foram um dos alvos predilectos da curiosidade nova-iorquina. Raramente avistados, viviam numa mansão de família em plena Fifth Avenue. A fama foi motivada pela nuvem de mistério que sobre eles tombou, dois excêntricos personagens que coleccionavam todo o tipo de coisas, em doses industriais, rodeando-se de armadilhas contra possíveis invasores numa casa repleta de lixo. No dia 21 de Março de 1947, um telefonema anónimo denunciou a presença de um corpo morto na casa. O cheiro nauseabundo assim o indicava. Ultrapassadas várias dificuldades para entrar no território dos Collyer, a polícia encontrou Homer morto. O médico legista concluiu como causas da morte: subnutrição, desidratação e paragem cardíaca. Com uma multidão à porta do edifício, a polícia tentou então encontrar o irmão Langley entre toneladas de lixo ali recolhidas, amontoadas e espalhadas por todas as divisões. Somente a 8 de Abril conseguiram dar com o corpo de Langley, já parcialmente devorado por ratos, decompondo-se a apenas três metros de onde se encontrara o corpo de Homer. Foram removidas 140 toneladas de objectos da casa.
Esta histórica verídica está na origem do romance Homer & Langley (Porto Editora, Março de 2013), de E. L. Doctorow (n. 1931). Com obra publicada há mais de 50 anos, o escritor norte-americano chega finalmente às livrarias portugueses. E chega da melhor maneira possível. Homer & Langley é uma obra memorável. Partindo de dados históricos, o autor desenvolve uma narrativa especulativa sobre como poderia ter sido a vida daqueles dois irmãos. De algum modo transforma o mito urbano numa parábola universal, contando-nos, ao mesmo tempo, a história do século XX norte-americano através dos olhos de um cego. Homer Collyer, o narrador, oferece-nos uma perspectiva da transformação do mundo estranhamente perturbadora. Ele perde a vista progressivamente, tal como o mundo vai perdendo os seus sons, submergidos de uma forma indefinida no ruído crescente das cidades, e os seus cheiros, desaparecidos para sempre na inodora atmosfera da poluição. Homer é, no seu próprio corpo, a representação perfeita do mundo contemporâneo. Apesar de autêntica em partes incertas, a história destes irmãos acaba por se transformar numa parábola do exílio humano imposto pelas cidades e pelo desenvolvimento.
Regressado da Primeira Grande Guerra com traumas dificilmente classificáveis à época, Langley cuida do irmão cego com esmero e dedicação. Mas o seu interesse pelo mundo, sem quebrar o laço familiar indelével, leva-o a um comportamento de reclusão, de isolamento, de doentio exílio interior. Colecciona todos os jornais diários, espingardas, pianolas, gramofones, máscaras de gás, coloca no centro da sala um carro velho, rodeia-se de lixo como se pretendesse capturar o tempo nesse seu universo privado. Por vezes, Homer refere-se ao comportamento de Langley usando o termo paranóia. A sua grande e desesperada obsessão, «a recolha dos jornais diários com o objectivo último de criar uma edição de um jornal que pudesse ser lido para todo o sempre e fosse suficiente para qualquer outro dia no futuro» (p. 44), faz-nos pensar, pela excessividade que a intenção manifesta, na relatividade dos factos que o tempo arrasta consigo e na relevância que lhes damos sem nos darmos conta de que, afinal, é de facto no meio de lixo que vamos cumprindo a nossa invisibilidade.
Prolongando-se muito para lá do ano em que os irmãos foram encontrados sem vida, este romance provoca-nos com o carácter desmesurado das suas personagens, ao mesmo tempo que nos confronta com o desamparo das nossas vidas, embaladas pelo ritmo frenético do consumo e da produtividade. Homer refere um momento que marcou no percurso dos dois irmãos o início do abandono do mundo exterior, pressupondo com a afirmação uma condição de exilados que, no fundo, é a condição de todos os excluídos, de todas as aberrações existentes na vida quotidiana das urbes; mas é também, cada vez mais e cada vez mais intensamente, a das pessoas ditas normais, com suas histórias vulgares que, sem sequer darem por isso, coleccionam anualmente toneladas de lixo com que engordam vidas fúteis, desesperadas, opressivas.

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