sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

VOCÊ ESTÁ AQUI



Reunidos os versos de três autores portugueses relativamente firmados no nosso panorama poético, e não esquecendo a publicação de Do Natural, livro de poemas de W. G. Sebald, a Quetzal Editores parece estar apostada em retomar o papel que outrora teve na publicação de poesia. Você está aqui (Janeiro de 2013) reúne poemas de João Luís Barreto Guimarães (n. 1967), poeta estreado em 1989 com uma colectânea de sonetos intitulada Há Violinos na Tribo. Barreto Guimarães começou por atrair a atenção dos leitores de poesia pela capacidade de subverter composições poéticas clássicas, nomeadamente o soneto, com súbitas explosões formais no interior de formatos fixos e uma especial atenção às minudências do quotidiano. Lugares Comuns (2000), escrito em prosa e muito provavelmente o melhor dos livros do autor, marcou uma inflexão no percurso iniciado em 89, mas não libertou o poeta de uma tendência genética para o experimentalismo. Os poemas do autor de Luz Última (2006) passaram a assumir configurações modernas, destacando-se pela profusão de parêntesis que não só marcam os ritmos da leitura como baralham, acentuam ou estilhaçam o(s) sentido(s) do poema. O título desta mais recente colectânea envia-nos directamente para contextos iconográficos muito específicos, nomeadamente as plantas espalhadas pelas cidades, museus e lugares que localizam os indivíduos no espaço. No entanto, o advérbio do título pode também indicar, além de um lugar, uma ocasião ou um contexto. O título é feliz, na medida em que todos os os poemas deste livro dependem de um contexto específico que os suporta, extravasando uns esse contexto, ficando outros cativos de uma vivência concreta cujo interesse para os demais é sempre discutível. No primeiro conjunto, João Luís Barreto Guimarães convida-nos para um “périplo” europeu de tipo cultural. Não visitamos ou revisitamos propriamente as cidades, mas antes elementos culturais presentes ou característicos nas e das mesmas. Pejados de referências a obras de arte, museus, papiros, aquilo que vulgarmente apelidam de focos de interesse turístico, estes poemas estabelecem uma oposição entre a efemeridade da vida tal como a levamos e a perenidade entrevista nas referências aludidas. É isso que inspiram, por exemplo, os Vasos gregos (fragmentos) da página 16: «Ao invés deles nós somos tão / cheios de movimento (fitando-os / nesta vitrina que nos devolve / tão frágeis)… elidindo que / perenes é neles que a história vive…» Não é de agora esta espécie de crise perante a fugacidade nos poemas de João Luís Barreto Guimarães. Por vezes sinto-me tentado a chamar-lhe pânico do efémero, o mesmo pânico há muito expresso nos clássicos que apenas o tempo tornou clássicos sem que a eles algum homem tivesse resistido. Nos subterrâneos deste pânico há sempre a urgência do nome, uma vontade de dizermos a nós próprios que valemos mais do que esse valor residual atribuído pelo tempo, grande escultor, grande ditador, à imensa maioria dos homens. Note-se, a título de exemplo, na aflição explícita num dos poemas da segunda parte cujo título é todo um programa: Morte anónima (p. 50). Pedala-se, desta forma, contra o inevitável esquecimento. Terá direcção o infinito a caminho do qual se pedala? Uns crêem valer a pena o esforço, outros não parecem alimentar ilusões quanto ao fim. Espaço, tempo, durabilidade, efémero, perene, fugaz, destino, são marcas d’água facilmente detectáveis nestes poemas, mesmo quando aceitam um tímido erotismo nas entrelinhas (Raparigas da Luz Vermelha, Um quarto de hotel em Madrid, O pecado da idade, Passeig de Gràcia) ou transformam uma mijadela num museu em cogitação existencial. O poema merece ser citado na íntegra:

Natureza-morta com mosca (2011)

ao Albuquerque Mendes

Junto ao
ralo do urinol na cave do Mauritshuis está
uma mosca pintada. Quem sabe terá escapado
de uma natureza-morta de
Balthasar van der Ast
exposta no piso 2. Numa tela flamenga uma mosca
nunca pousa pelas melhores razões
(é efémera a natureza
breve e
decadente é a vida) se
a tentasse enxotar dos frutos representados
logo um guarda me diria
para recolher o dedo. Aqui
atinjo-a com gosto (o jacto
ainda eficaz) enquanto imagino os guardas
um par de pisos acima
perguntando pela morte a cada
tela da sala. Se eu lhe apontar mesmo às asas
duvido que
volte a voar.

Talvez o mais arriscado dos poemas do livro, por tão facilmente poder cair no ridículo, este poema é um dos melhores do primeiro conjunto. É um dos melhores porque é, provavelmente, daqueles onde se exprime de um modo menos presunçoso a contradição intrínseca ao discurso que tantas vezes opõe a eternidade da arte à efemeridade da vida. E é essa “vida efémera” que o segundo conjunto do livro recupera, em sintonia com outros livros do autor onde desenha o quotidiano não como quem procura retratá-lo, mas como quem tenta resgatá-lo, precisamente, da vulgaridade, da superficialidade, da banalidade. Os instantes redesenhados têm, porém, o dom de inspirar pequenas reflexões, observações ligeiras, comentários por vezes irónicos, outras vezes escarninhos, comentários descontraídos. São poemas onde a comparação entre a experiência vivida e o passado estabelecem, também, uma curiosa analogia com as contradições expressas na primeira parte, podendo no final o leitor concluir que talvez o absurdo seja a melhor resposta ao problema universal da morte, essa experiência que, afinal, determina tudo o que pensamos sobre a vida:

História clínica

As mamas da dona Ana eram um
sítio maravilhoso. Maduras (qual
par de mangas) de entre elas saíam
coisas extraordinárias
(notas de 5 para os netos
lenços bordados no Minho) uma ou
outra medalha do mau-génio
do marido. Dessa vez veio à cidade e
o doutor ficou com uma –
ela deixou de poder encravar no meio delas
tudo aquilo e os santinhos
(deste lado uma colina alta e generosa desse
um prado dividido). Num ano
levou-lhe a outra e outra levou-lhe
o marido (ainda há mulheres com sorte:)
está
enfim livre de perigo.
João Luís Barreto Guimarães, Você está aqui, Quetzal Editores, Janeiro de 2013.

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