terça-feira, 6 de setembro de 2011

A ILHA DE SUKKWAN

Não vale a pena aprofundar muito. A Ilha de Sukkwan (Edições Ahab, Junho de 2011), de David Vann (n. 1966), tem merecido justos elogios na imprensa especializada. O autor foi entrevistado e explicou a relação que a história do livro mantém com a sua experiência pessoal. Lê-se como foi escrito, de jorro. Comecei-o a caminhar, entre milheirais e silvedo, na direcção do Rogil. Só descansei quando cheguei à última palavra da derradeira página, no próprio dia, já no termo de uma tarde de praia. Peguei na Sebenta das férias, passei cola por uma folha e deixei cair alguma areia sobre o papel, de modo que a areia ali ficasse colada. Por baixo escrevi: sobre esta areia foi lido, num nublado dia de Verão, A Ilha de Sukkwan. Assim é esta história, um dia de Verão nublado. Aos treze anos, Roy vai viver com o pai para uma cabana numa ilha do Alasca. Esta deslocação para um espaço isolado conduz-nos na direcção de uma intimidade que está longe de ser pacífica. Como as ilhas, as pessoas guardam segredos, medos, frustrações, problemas mal resolvidos. À sua volta, apenas o zumbido dos mosquitos e o gotejar da água interrompem o silêncio atroz. E a respiração, a respiração de um pai e de um filho separados por contingências existenciais às quais costumamos dar o nome de equívocos. Porém, se há coisa que esta história nos ensina, é a inexistência do equívoco no curso da vida. O choro contido e disfarçado do pai, enquanto Roy tenta adormecer, atesta-o, sugere-nos uma tormenta interior impossível de dissimular. Cabe a David Vann socorrer-se de alguns truques para nos ir mantendo alerta: «Os dias claros que tinham tido eram a excepção. Esta chuva densa, e o mundo fechado que formava, era o que teriam pela frente. Seria essa a morada deles» (p. 51). A simplicidade das palavras é proporcional à sua força, abre-nos o apetite, aumenta a curiosidade. Logo de seguida o pai de Roy reconhece que há algo nele que não está bem, resta saber o quê. Como é óbvio, a tentação de elaborar juízos de carácter sobre aquele homem flagelado por uma dor privada pode precipitar-nos. Um fraco, um débil que se sabe à beira de cair num precipício mas que se agarra a frágeis pretextos para não cair de vez. O homem sente-se só, profundamente só, não só de estar isolado numa ilha, mas só de estar isolado dentro de si próprio, rodeado de sombras, frustrações, problemas, cansaços, decepções, teorias sem sentido e inconsequentes. É então que o inesperado acontece. A segunda parte do livro como que rasga o ventre das tormentas e põe a claro as contradições humanas. Não vale a pena aprofundar muito. A escrita é de uma eficácia terrível, deixa-nos a cambalear entre o ódio e uma inaceitável indulgência para com a personagem central da narrativa. Como nunca nada é aquilo que aparenta, surge-nos uma dúvida: poderá este livro ser um gesto misericordioso? Ou é antes uma tentativa, quase terapêutica, de compreender o que leva alguém a embrenhar-se nas suas contradições? Página 124: «Era uma família desengraçada. Tinham uma filha com cara de papagaio e um filho com umas orelhas enormes e os olhos demasiado juntos e uma boca torcida de maneira bizarra. Os pais também não eram nenhumas belezas, o homem corpulento e com pinta de pateta e a mulher tentando olhar surpreendida para a objectiva. Tinham ido de férias para toda a parte, aparentemente. Camelos e peixes tropicais e o Big Bem. Jim detestou-os e sentiu-se muito bem por estar a comer a comida deles. Vão-se foder, disse ele para as fotografias enquanto lhes devorava os ravioli. Mas isto não durou muito e depois deu por si ali sentado à mesa à luz do candeeiro, com anda que o distraísse. Pausa, disse ele» (p. 124). O contexto em que esta acção e estes pensamentos nos são descritos leva-nos a supor a loucura de um homem. Só pode haver loucura onde tudo é tão racional, mesmo quando Jim, o pai de Roy, incapaz de adormecer, se mete a olhar para as estrelas, «mesmo não havendo nenhumas visíveis» (p. 133). O desfecho, ainda que, em certa medida talvez moral, nos aproxime de um famoso filme de Frank Capra, não iliba o homem. Até porque, neste caso, nenhuma estrela caiu do céu. Talvez a intenção nem seja essa, talvez a intenção seja mesmo expurgar a incapacidade do perdão quando só o perdão nos parece apaziguador. Porque há situações assim, exigem-nos um perdão que não reabilita quem nos fere. Antes nos reabilita a nós próprios, a nós que perdoamos.

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