domingo, 10 de março de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #12


Se é importante saber de onde vimos, não menos será que fiquemos atentos ao modo como os outros nos vêem. Certo que jamais teremos acesso ao que pensam sobre nós, mal seria se tivéssemos. Imaginai o inferno se outros acedessem ao que acerca deles pensamos. É saudável e até agradável esta distância que nos separa do outro, este exílio que obriga à reflexão e à desconfiança. Mas não menos agradável é assistir a quem fale de nós abertamente, desbravando terreno à imaginação como ao espelho se abre um rosto. Quando digo nós, minhas filhas, não me refiro ao indivíduo, que esse será sempre mistério inconfessável para si mesmo, mas antes ao que no individuo há de influência exercida pelo colectivo. Refiro-me à cultura, à sociedade, ao ambiente social que nos deforma e conforma ou que simplesmente nos informa, permitindo-nos que cresçamos em reacção e conflito ou em acomodação e renúncia.
   Miguel de Unamuno (1864-1936) foi um ilustre espanhol que ousou pensar-nos em voz alta, dedicando-nos o opúsculo com o título Os Portugueses, Um Povo Suicida. Originalmente escrito em 1908, podeis conhecê-lo na edição da Ática datada de Abril de 2011. Não é difícil encontrar sensatez no diagnóstico: «Portugal é um povo triste e é-o mesmo quando sorri» (p. 7). Classificar-nos de povo suicida não nos socorre na manifesta propensão genética que temos para a desgraça, mas livra-nos do fardo que leva a concluir a inutilidade da vida. Com tão cruel evidência não se conformam os fadistas, encalhados entre o oceano e sucessivas invasões. A solução para os portugueses está em fugirem de si próprios como o diabo da cruz. Daí que se detestem, daí que se ocupem tanto zurzindo contra si mesmos, daí que se mostrem tão afáveis e complacentes para com aquilo que vem de fora e implacáveis para com aquilo gerado dentro.
   Li algures, minhas filhas, um retrato cómico da sociedade portuguesa: espécie de bolha onde todos dizem mal uns dos outros sem terem a noção de que os outros são essa massa indefinível entre os quais também nós nos encontramos. Sendo que cada um de nós é sempre um outro, não resta nada de bom entre os portugueses. No entanto, a desgraça tem sido nossa força. Sabemos rir da aspereza com que nos crucificamos. Talvez aí germine o gene desta lúgubre inclinação para o suicídio, não necessariamente físico, mas também moral, espécie de “genocídio” focalizado no ânimo com que poderíamos encarar a inutilidade das nossas existências. A aceitação desta inutilidade afigura-se elementar, na medida em que se impõe como a única atitude verdadeiramente útil à fatal condição elegíaca.
   Há neste povo «mais apaixonado do que sentimental» de que falava Unamuno uma matemática inquestionável: «os sonetos são um grande purgante das paixões excessivas, pois sabe-se de sonetistas que morreram de fome mas de nenhum que tenha morrido de amor» (pp. 8-9). Podeis imaginar quanto disto vale num país que se diz de poetas! O resto é História e alternância democrática, aquele masoquismo de passarmos o tempo a vituperar quem elegemos reiteradamente, a indolência com que tratamos tudo quanto nos indigna, um deixar andar na esperança de melhores dias que virão, porventura, como virá o tal que se perdeu nas áfricas, embrulhado em bruma invisível. Sabemos rir, excepto de nós próprios. Por isso nos suicidamos.
   Como pode não ser suicida um povo assim? Os suicídios de Antero, Soares dos Reis, Camilo, Mouzinho de Albuquerque, Trindade Coelho, enumerados por Unamuno, são resíduos numa sociedade toda ela suicidária, mero exemplo lacónico, previsível, sucinto. A orgânica não poderá ser outra enquanto persistirmos na saudade, no lamento, nesse pó cavernoso que a todos inspira versos tristonhos e esmorecidas elegias. Sobre toda essa tralha, um lençol de gargalhadas estridentes e a consciência interna da maior das forças vitais: nada há de mais útil nesta vida efémera que a inutilidade decretada às coisas que dão prazer e fazem rir. O resto subentende-se no opúsculo: «Não falta mesmo por aí quem diga que isto não é já um povo, mas sim o cadáver dum povo» (p. 13). Portanto, ride, ride de vós próprias e do espanhol que nos define, ride do mundo e da vida, ride com alegria e paixão, pois só rindo de tudo e com todos os dentes à mostra podeis um dia dizer ter estado próximas da felicidade. Isto é, da alegria de viver.

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