sexta-feira, 5 de março de 2010

POLEMISTA E POETA

A biografia de Pasolini é um manancial de processos, interrogatórios, denúncias, depoimentos, audiências, condenações, recursos, detenções, notificações, sentenças, transgressões, difamações, agressões, distúrbios, queixas, assaltos à mão armada… Foi acusado de tudo, condenado por actos obscenos, detido por embriaguez, condenado por transgressão rodoviária, por porte abusivo de pistola, acusado de corrupção de menores, de ultraje aos bons costumes, etc., etc., etc.. Apreenderam-lhe romances, filmes, agrediram-no, violentaram-no, mataram-no. Nasceu este demónio a 5 de Março de 1922, em Bolonha, filho de um militar e de uma professora. Por imperativo familiar, peregrina entre a cidade natal e Parma, Belluno, Conegliano… «A minha infância foi uma longa série de mudanças...» Em 1935, tem um irmão: Guido Alberto Pasolini, que acabará executado por um corpo de jugoslavos dissidentes. Pier Paolo faz a escola primária em Sacile, escreve poemas dedicados à mãe, alimenta um ódio visceral pelo pai, que olha para o filho como um pequeno génio em formação. «Antes, até aos quatro ou cinco anos, desenhava muito. Aos sete anos, na segunda classe, escrevia pequenos poemas sobre a natureza, as árvores, as flores, as aves; exprimia ingenuamente o meu afecto pela minha mãe. Por outro lado, foi precisamente a minha mãe que, ao escrever uma poesia que me dedicou, me revelou a possibilidade de escrever poesias». A aposta da família na educação de Pier Paolo Pasolini é clara. Apesar da itinerância, o jovem consegue completar os estudos secundários no liceu Galvani e licenciar-se em letras na Universidade de Bolonha. Em 1942, o pai é feito prisioneiro no Quénia, o resto da família refugia-se em Casarsa, Pasolini pulica, em edição de autor, o seu primeiro livro de poemas em dialecto friulano: Poesias a Casarsa. Tinha 20 anos. «Escrevia estes primeiros poemas friulanos em plena voga do hermetismo cujo mestre era Ungaretti. À margem de um certo simbolismo provincial, Montale empenhava-se em prolongar poetas como Eliot e Pound; em suma, todos os poetas herméticos viviam da ideia de que a linguagem da poesia era uma língua absoluta. (...) Com muita ingenuidade, decidi ser incompreensível e, para tal, escolhi o dialecto friulano. Era, para mim, o cúmulo do hermetismo, da obscuridade, da recusa de comunicação. Ora, aconteceu uma coisa pela qual não esperava. O uso deste dialecto proporcionou-me o gosto da vida e do realismo». Enquanto cumpria serviço militar em Livorno, o regime caiu e o poeta regressou a Casarsa. 1945 foi o ano da morte do irmão, membro da brigada Osoppe. Pasolini lecciona, funda a Academia de língua friulana, adere ao Partido Comunista Italiano, empenha-se politicamente em várias lutas, lê Gramsci, Marx. Por esta altura, escreveu os poemas que darão corpo a L’usignolo della Chiesa cattolica (1958). Mas em 1948, um padre de Casarsa convenceu a família de um jovem a apresentar queixa contra Pasolini. Este acabou condenado por desvio do menor. Na sequência, foi perseguido, envolveu-se em vários escândalos, abandonou o PCI e Casarsa. Roma será a próxima estação. Dois anos de desemprego quase o levaram ao suicídio. Disfarçava a miséria com os jovens subproletários dos «borgata». Conseguiu um lugar como professor em Ciampino, travou conhecimento com o escritor Giorgio Bassani e chegou ao mundo do cinema como argumentista. Estabeleceu-se, com a família, em Monteverde e continuou a publicar os seus poemas. Criou um jornal poético, Dal diario, colaborou com a revista Officina, editou o romance Ragazzi di vita, sobre as suas experiências com os tais jovens subproletários. O escândalo estava mais uma vez instalado, assim como a celebridade. O reconhecimento dos pares e a fama que chegou com o romance e se prolongou com o cinema só aguçaram o apetite das hienas: sucedem-se perseguições, processos por obscenidade, denúncias várias. Pasolini aproximou-se dos cristãos progressistas, aprofundou os seus conhecimentos sobre antigas civilizações, escreveu vários ensaios, proferiu conferências sempre rodeadas de enorme polémica. «Sem ter deixado de habitar Roma, posso dizer que vivi fora da cidade. Progressivamente, este apego transformou-se em ideologia e acabei por viajar frequentemente e por amar os países do Terceiro Mundo, com um amor rural irredutível. Viajei pela Índia, pelos países africanos, árabes... Por Marrocos, pela Síria, pela Turquia, etc..» A sua relevância nos meios culturais era cada vez mais notada. Com ela, os escândalos políticos, as contradições, as tentativas de conciliação, a luta e a necessidade de intervir, manchadas sucessivamente pelo desregramento emocional. «Luta contra todos os conformismos e todos os preconceitos, quer sejam de direita ou de esquerda. Redefine o fascismo e o anti-fascismo à luz da nova evolução social (a sociedade de consumo)». Ateu confesso, não deixava de negar uma forte inclinação para um certo misticismo. «Embora a minha visão do mundo seja religiosa, não acredito na divindade de Cristo». A colaboração com o Il Corriere della sera reaproximou-o do PCI, mas sempre com a desconfiança das alas conformistas. «De resto, escrevi no poema Una disperata vitalità que sou comunista porque sou conservador». A 2 de Novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini apareceu morto numa praia de Óstia. Assassinato. A obra de Pasolini continuou a fazer o seu caminho: em Janeiro de 1976, Saló foi apreendido e o produtor Grimaldi acusado de comercializar publicações obscenas. Debaixo da terra, o cadáver defende-se: «Muitos nunca me perdoaram escrever entre eles, sem estar enfeudado a nenhum poder nem constrangido pela Lei da sobrevivência. O meu verdadeiro pecado, foi ter exercido o ofício de jornalista como polemista e poeta, na mais total insubordinação. Esta insubordinação, transferiram-na para o plano moral, e a homossexualidade tornou-se, por esta operação de transferência, o próprio princípio do mal».

Fonte: As Últimas Palavras de um Ímpio (conversas com Jean Duflot), trad. Isabel St. Aubyn, Distri Editora, 1985.

2 comentários:

via disse...

Mamma Roma é uma obra de que gosto, mas não me fascina a obra de Pasolini, talvez pelo seu radicalismo, mas fascina-me a sua vida e horroriza-me a sua morte. bem lembrado.

hmbf disse...

Pois a mim, estranhamente, o que menos fascina é a vida. Obrigado pelo comentário.