quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

PERGUNTA AO PÓ

Eis a mais indiscutível lei da vida: enquanto uns morrem, outros nascem. 2009 há-de ficar marcado pelo nascimento da Ahab Edições, uma editora sediada no Porto à qual devemos uma das melhores surpresas, se não a melhor, do ainda corrente ano. Refiro-me, obviamente, à primeira edição portuguesa de Pergunta ao Pó (Ask the Dust, 1939), para muitos a obra-prima do escritor norte-americano John Fante (n. 1909 – m. 1983). Com tradução irrepreensível de Rui Pires Cabral, o romance é precedido por um pertinente prefácio assinado por Charles Bukowski. A quem tenha escapado a história, convém lembrar que foi graças às exigências do autor de A Sul de Nenhum Norte que, na década de 1970, a editora Black Sparrow ressuscitou a obra de Fante, um escritor esquecido e enterrado cuja influência na escrita de Bukowski veio a revelar-se determinante: «Qual é o seu autor preferido? / Fante. / John Fante. Ask the Dust, Wait Until Spring, Bandini. / Onde podemos encontrar os livros dele? / Eu encontrei-os na biblioteca municipal; na esquina da Fifth Avenue com a Olive Street, não é? / Porque é que gosta dele? / É a emoção absoluta. Um homem muito corajoso» (in Mulheres, trad. Fernando Luís, Dom Quixote, 1992, p. 200).

Que eu saiba, este é o segundo romance de John Fante a ser publicado em Portugal. O primeiro foi A Confraria do Vinho (The Brotherhood os the Grape, 1977), editado pela Teorema em 2007. A escrita de Fante é confessadamente autobiográfica. O autor recorre com bastante frequência a um alter-ego, Arturo Bandini, para explorar os seus temas predilectos, nomeadamente os problemas de identidade dos ítalo-americanos, conflitos familiares diversos e a vida agreste de escritores em busca da afirmação. Há um elo evidente entre Bandini e John Fante. São ambos descendentes de italianos emigrados, nasceram os dois no Colorado, mudaram-se para a Califórnia com o desejo da escrita em mente: «nasceste pobre, filho de camponeses depauperados, empurrado para aqui e para ali porque eras pobre, fugido do teu Colorado natal porque eras pobre, e agora erras pelas sarjetas de Los Angeles porque és pobre e esperas escrever um livro que te faça rico, pois aqueles que te odiavam no Colorado deixarão de te odiar se o escreveres» (p. 27). A realidade e a ficção confundem-se nesta obra, a fronteira torna-se indiferente porque as palavras que se nos oferecem vêm animadas pelo sangue que as viveu.

O primeiro romance de John Fante foi publicado após várias tentativas falhadas de publicação na The American Mercury. A insistência valeu-lhe a admiração do editor H. L. Mencken, que não só lhe publicará os primeiros contos como o ansiado romance de estreia Wait Until Spring, Bandini (1938). Antes, Fante tinha escrito The Road to Los Angeles (1933), o qual só postumamente, já em 1985, viu a luz do dia. Pergunta ao Pó foi a segunda obra de maior fôlego a ser editada. Além de romances, Fante escreveu contos e argumentos para filmes, muitos deles nunca adaptados. Estes argumentos surgem num contexto de absoluta necessidade material. Casado com Joyce Smart desde 1937, o escritor viu-se na obrigação de arranjar um sustento que os livros não garantiam. Os «dias de míngua» narrados em Pergunta ao Pó, vivendo em quartos arrendados, alimentando-se à base de laranjas, contando os trocos, os dias de vadiagem, não podiam continuar. A vida de Hollywood foi um tubo de escape transformado em pesadelo. Mais tarde, acabará por se mudar com a família, mulher e filhos, para Malibu.

Mas o que nos é narrado em Pergunta ao Pó não se resume a um relato das privações sentidas por um jovem a braços com o desejo de se afirmar enquanto escritor. O registo humorístico alterna com passagens de uma ternura impressionante, a capacidade de convocar situações que permitem traçar o essencial de uma personalidade hesitante, tão cruel quão apaixonada, permitem-nos formular uma imagem de Fante a partir da caricatura que acaba por ser Arturo Bandini. É neste contexto que o amor sentido por Camilla Lopez, uma empregada de café de origem mexicana, nos situa num lugar de desolação que tem por fundo a paisagem do deserto de Mojave. O termo da história é de uma comoção sem limites. A imagem de Bandini a lançar um exemplar do seu primeiro romance na direcção que a amada em fuga havia tomado faz-nos pensar numa espécie de conflito presente em toda a obra: um conflito, nem sempre claro, entre o acto de escrever e o sentimento de amar.

É curiosa a ternura pela mãe que Fante faz aparecer nos seus romances, ao mesmo tempo que denota um certo desprezo pelo pai. As origens católicas contrastam com momentos de absoluta descrença, a pobreza material é um estado a superar que perde toda a importância perante a compaixão sentida pelos outros, Bandini muda de ideias com extrema facilidade, pensa com o coração e o coração é-lhe pautado por um “mas” inalterável ─ «Arturo Bandini, nem carne nem peixe nem coisa nenhuma» (p. 120) ─, a inconstância parece ser o que de mais constante há na sua personalidade. Só não vacila nesse desejo de afirmação a partir da escrita. Sendo assim, somos levados a crer que há entre Bandini e o acto de escrever uma ligação que se mantém vertical perante os terramotos do amor. Não que uma realidade se sobreponha a outra. Na vida real, acabarão por estar tragicamente unidas. Em 1955 John Fante descobre-se vítima de diabetes. Amputam-lhe uma perna. Em 1978 fica praticamente cego. Dita a Joyce, sua mulher, as páginas de Dreams From Bunker Hill (1982), o seu último romance publicado em vida. Uma curiosidade: Pergunta ao Pó foi adaptado ao cinema por Robert Towne, com Colin Farrell no papel de Arturo Bandini e Salma Hayek a recriar Camilla Lopez.
Escrito para o Rascunho.

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