segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

OBRA POÉTICA COMPLETA

Agora que o ano termina e todas as listagens pululam, convém espicaçar eventuais e previsíveis desmemoriados com factos passados à história, mas sobre os quais a história não deve passar como se não tivessem existido. Em 2009 completaram-se 200 anos sobre o nascimento de Edgar Allan Poe. Por cá, o génio de Poe ─ poucas vezes faz tanto sentido o uso do substantivo ─ foi sendo evocado e celebrado com diversas publicações, das quais destaco a edição da sua Obra Poética Completa levada a cabo, no mês de Março, pela editora Tinta-da-China. Antes de mais, é de bom-tom realçar a beleza inquestionável do volume (algo a que a editora em causa nos vai habituando com hedonística felicidade). O trabalho gráfico de Vera Tavares e as ilustrações de Filipe Abranches não só acompanham a excelência do labor que a tradutora Margarida Vale de Gato depositou nesta obra, como nos permitem afirmar estarmos perante um objecto cuja beleza procura fazer justiça ao ideal do autor ali compilado. Depois integram este volume, além dos poemas, um drama inacabado e um ensaio de Poe, assim como uma dedicadíssima introdução, preciosas notas explicativas da origem e dos processos relacionados com a composição dos diversos poemas, uma bibliografia seleccionada e uma cronologia biobibliográfica de inquestionável interesse.
Na introdução, Margarida Vale de Gato ocupa-se de vários aspectos clarificadores da complexidade estética do autor d’O Corvo. Entre outros, a ambivalência mística, o culto do paradoxo, os estados mentais intermitentes, a ironia romântica e a quimera da Beleza, o fascínio orientalista patente em poemas como Al Aaraaf e Israfel, o conflito entre os conceitos de fancy e imagination. A verdade é que a poesia de Edgar Allan Poe presta-se a leituras assaz diversificadas. É essa, de resto, a característica fundamental dos grandes autores. Uma obra, seja ela qual for, que constranja o seu intérprete no processo executório que lhe dá vida, perde, à partida, um dos valores mais característicos da criação artística: a liberdade. Este valor não é próprio daquele que cria, ele conquista-se na relação estabelecida entre criador, obra e intérprete, ou seja, aquele que recria. No ensaio A Filosofia da Composição, mais do que a defesa do poema enquanto construção, afastando-se Poe, neste domínio, das “tempestades impetuosas” que fundamentavam a poesia romântica, salienta-se a «sugestividade ─ uma espécie de corrente subterrânea, embora indefinida, de sentido» (p. 287). É esta sugestividade que marca toda a poética de Edgar Allan Poe. E esta sugestividade não se consegue sem espaço para a deambulação interpretativa.
Não é de admirar que Charles Baudelaire ou o nosso Fernando Pessoa se tenham deixado encantar pela sombra do poeta maldito norte-americano. Poe nasceu praticamente órfão na Boston de 1809. Ambos actores, o pai «sucumbe ao alcoolismo e abandona a família» um ano antes de a mãe ter falecido tuberculosa, em 1811. Edgar é adoptado e viaja com o padrasto pela Grã-Bretanha, onde faz os estudos primários. Começa a escrever versos satíricos, tem uma paixão platónica pela mãe de um dos seus colegas, contrai dívidas de jogo, dá cabo da relação com o pai adoptivo, à medida que se vai deixando tomar pelos vícios da boémia literária. Conhece algum sucesso em vida como contista e jornalista, mas arruína-se na embriaguez e na depressão. É quase impossível não associar as doses excessivas de láudano, os excessos alcoólicos, as depressões, à toada alucinatória que está na origem de praticamente toda a sua obra. Os mistérios e o fantástico, em Poe, surdem de uma deriva pelos “paraísos artificiais” que propiciaram, como também a Baudelaire e a Pessoa, uma sensibilidade para o Belo que cai por terra, como um pássaro morto, quando confrontado com a desditosa realidade do mundo terreno.
Esta desditosa realidade fica patente no tema por excelência da poesia de Poe: a morte de uma bela mulher e o pranto do amante enlutado. Um Péan, Para Alguém no Paraíso, Lenora, O Corvo, Annabel Lee são apenas exemplos maiores deste género de evocação, o qual não pode ser dissociado de uma consciência aterradora da finitude e da ruína que aparece magnificamente simbolizada no poema O Coliseu. É verdade que a poesia de Edgar Allan Poe se faz envolver de uma espécie de nuvem tenebrosa e misteriosa, pautada por uma melancolia aparentemente sem saída, mesmo que, pontualmente, o ideal da Beleza se nos mostre sob a forma de poema, mas também não deixa de ser verdade que dessa nuvem brotam bátegas de uma ironia paradoxal: «Embora num só sonho… eu fui feliz, / Fui tão feliz… E eu amo essa tontura… Sonhos!» (p. 64) Estes sonhos, lugar de realização de uma certa felicidade, não deixam de ser parte integrante da vida. Eles não são ainda o mundo do inconsciente onde se encontram recalcadas as razões das dores presentes, eles são o mundo proscrito pelos olhos que acordados se vêem distantes de um sono brando ao lado da amada. O sonho é aquilo que em vida mais nos aproxima da morte, é o delírio que nos aparta, momentaneamente, da realidade. Uma advertência: a tradução do poema Para M. L. S., citado nas notas finais, não consta entre os poemas coligidos, o que vem confirmar aquela regra que afirma nada ser perfeito se não contiver pelo menos um erro.
Escrito para o Rascunho.

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