terça-feira, 15 de setembro de 2009

UM ECO VAZIO


Dez anos passados sobre o terramoto de Lisboa, assistiu-se em Setúbal a um abalo sísmico sem precedentes. Nascia Manuel Maria, a 15 de Setembro de 1765, filho de José Luís Soares de Barbosa, bacharel de Coimbra com veia poética reconhecida, e D. Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage, filha de militar francês. Também a mãe trazia poesia nos genes, pelo lado de uma tia tradutora de Milton e autora de um aclamado poema épico. Criado em clima de ascendência poética, coube ao quarto de seis filhos a desgraçada herança dos versos. A morte da mãe aos dez anos instaura o transtorno familiar. O dinheiro não abundava, os filhos eram muitos, Gil Francisco, três anos mais velho que Bocage, merecia todas as atenções paternas. Impossibilitado de frequentar a Universidade, Manuel Maria optou pela carreira militar. A 22 de Setembro de 1781 apresentou-se no Regimento de Infantaria de Setúbal. Tinha dezasseis anos e assentou praça como soldado. Mais tarde, entrará na Academia dos Guardas Marinhas, habitado pelo sonho das grandes viagens e da vida lisboeta. Aporta na capital em 1783, com dezoito anos. Supõe-se que tenha sido aluno mediano, pendendo o seu interesse mais para os botequins e para os outeiros, cultor incansável que foi da boémia e da cavaqueira literária. Conhece então o amor da sua vida, Gertrudes, irmã de um camarada de curso. Gertrudes tornou-se uma tal obsessão, que o poeta se viu na necessidade de um posto que o libertasse do estigma da poesia. Naquele como neste tempo, a poesia não sustentava famílias e cultivava-se como toalhinhas de renda. Poeta era estatuto para malucos. Vislumbrou na Índia possibilidades que Portugal não lhe dava. Partiu a 14 de Abril de 1786, deixando para trás a amada em posto de espera. O guarda-marinha Manuel Maria Barbosa Hedois du Bocage viaja numa nau sombria, atravessa temporais que o levam ao Brasil. A 2 de Setembro de 1786, pisa Moçambique, desembarcando em Goa, finalmente, a 29 de Outubro de 1786. São tempos de profunda solidão, faltam-lhe amigos, admiradores, amores. Sente-se isolado. Tudo o que recebe é o cruel silêncio de Gertrudes, chegado de longe como um eco vazio. Matricula-se na Aula Real de Marinha de Goa, recebe a notícia da traição de Gertrúria, pensa suicidar-se, adoece de amor. Sarado o golpe da traição, procurará desforrar-se o resto da vida. Episódio caricato leva-o a combate, transforma-se num herói, e rapidamente se acha o poeta investido no posto de tenente de infantaria e despachado para Damão. Partiu para esta cidade a 8 de Março de 1789. Se Goa lhe foi odiosa, Damão parecia a morte. Com vinte e três anos de idade, sente o apelo da liberdade e deserta. Começa a vaguear à toa, embriagado de liberdade e com novas paixões na calha. Está em Surrate, apaixona-se por D. Ana, uma rameira fina a quem dedica vários versos. Mas ela preferia satisfazer-se com um negro robusto, o qual deixou a fatalista numa aflição incompreensível para Manuel Maria depois de o negro dar de frosques. Como podia ela chorar por um preto quando não mostrava lágrima que fosse pelos versos pungentes do poeta? Vexado, parte este para Macau. Aí deambula em confrangedora situação, sendo acolhido por um abastado negociante que admirava o seu estro. Em 1790 regressa a Portugal, para receber a notícia de que Gertrudes de Eça, a sua Gertrúria, o havia traído com seu irmão Gil Francisco. Estavam casados. Bocage regressa à metrópole com a saúde bastante debilitada, vindo recompor-se para Óbidos, terra de imensos e inconstantes amores (lendários?). Novamente em Lisboa, vive mais pobre do que nunca - dorme em camas emprestadas, veste fatos alheios – mas feliz de liberdade. Elmano Sadino persegue muitas e novas paixões, por vezes interrompidas pela morte das musas. Corta relações com a família, convive com a escória da Sociedade, perde-se nas ruelas do Bairro Alto, Mouraria, Alfama, entra ao despique com outros poetas, ganha nome, dá nas vistas, e, em 1791, materializa um velho sonho: publica o seu volume de estreia, intitulado Rimas. O livro é um sucesso. Frei José Agostinho de Macedo, amigo de todas as horas, persuade Bocage a ingressar na Nova Arcádia (Academia de Belas-Artes), uma agremiação de gente formalista que pouco tinha que ver com o talento boémio de Bocage. Várias trocas de galhardetes entre poetas na Academia inspiraram sátiras escandalosas e extravagantes ao poeta das Rimas, aplicando-se este rapidamente na demolição da Nova Arcádia. A Revolução Francesa inspira-lhe versos contraditórios, embora o elogio da liberdade seja uma constante. Conta 32 anos e uma vida repleta de paixões. Sem tento na língua nem freio no espírito revolucionário, acaba encarcerado à ordem de Pina Manique. Passou 89 dias no Limoeiro, ficando posteriormente à conta do Tribunal do Santo Ofício. Vítima da Sociedade do seu tempo, foi parar a um Hospício. A liberdade e o amor pareciam arredados da nova vida. Dedicava-se quase exclusivamente ao trabalho, pingando amores para desenfastiar. Em 1804, a notícia de um aneurisma condena-o à morte. Ainda publicou alguns folhetos durante o período de doença. Redige o seu epitáfio a 21 de Dezembro de 1805:

De Elmano eis sobre o mármore sagrado
A lira em que chorava ou ria amores.
Ser deles, ser das Musas foi seu Fado:
Honrem-lhe a lira vates e amadores.

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