sábado, 22 de agosto de 2009

BASQUIAT




Aproveito as manhãs para avançar algumas páginas n’A Montanha Mágica: «Quem não apresenta os vinhos mais caros e distintos nos banquetes, perde os convivas e não consegue casar as filhas» (p. 227). É o que me aconteceria se continuasse a presentear as visitas com a pomada do Rogil, este ano substituída por outros néctares mais em conta para o fígado. Reparo que o tanque é visitado amiúde por rolas turcas e pegas de rabo azul. À noite, em conjunto com grilos e cigarras, mais o mugido ocasional das vacas, produzem uma banda sonora bastante agradável, poesia que escapa aos desalojados da cidade. O Basquiat anda sempre com as antenas em riste, entretém-se a mascar ervas e a espantar os gatos que se aproximam atraídos pelo cheiro a peixe grelhado. Ontem pregou-nos uma partida. Antes de irmos para a Amoreira, uma das praias cuja paisagem perdeu quase todo o encanto com a chegada em massa dos “amigos do ambiente”, passámos por casa da dona Lurdes para reclamar de um cano entupido na casa de banho. Estávamos na praia, quando a Ana recebeu um telefonema aflito dando conta do desaparecimento do “mutante canídeo” enquanto o cano era reparado. O valente deve ter estranhado os invasores e pôs-se a milhas. Meti-me no carro e acelerei o mais que pude, de olhos bem abertos a ver se avistava algum novelo de pêlo branco saltitante. Era pouco provável que fosse encontrá-lo muito distanciado da mansão, mas qual não foi o meu espanto quando o avistei vindo do lugar das vacas, junto a uns estábulos abandonados, quase no cruzamento que apanha a estrada principal do Rogil. Ora, entre a Esteveira e o cruzamento ainda vão, pelo menos, uns três quilómetros. Tendo em conta que o cachorro zarpou na direcção contrária ao percurso viário, para os lados de Maria Vinagre, só pode ter vindo ali parar atravessando os campos de pasto das vacas, as pequenas hortas e os milheirais que compõem a paisagem. Tê-lo encontrado foi uma sorte. Quando o vi, contei-lhe que aquele acto de traição merecia o mesmo castigo que os colonos da América do Norte infligiam aos traidores no séc. XVIII: «O castigo por traição era ser enforcado, cortarem-lhe a corda vivo, estriparem-no, forçá-lo a ver as próprias entranhas a serem queimadas diante de si, e por fim ser decapitado e esquartejado» (Bill Bryson). Mas depois pensei melhor e verifiquei que não havia traição na fuga. Afinal, assim que eu buzinei o quadrúpede correu felicíssimo na direcção do carro. Até acabei por sentir um certo orgulho na aventura do cão. Fez-me lembrar os tempos em que eu fugia de casa quando ia vazar o lixo. O espírito deve ser mais ou menos o mesmo, essa necessidade de aventura e de liberdade que força a partir quem pondera menos do que age. Estou agora a imaginá-lo de roda das vacas, calcorreando tomateiros e atravessando milheirais, farejando a terra na direcção de alguma coisa que ele lá saberiaa o quê, provavelmente os donos, provavelmente uma cadela que lhe meteu as necessidades em alvoroço. Imagino-o perdido na paisagem e invejo-o.

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