quarta-feira, 29 de julho de 2009

DA CENSURA

Lê-se n'A Intervenção Surrealista (Assírio & Alvim, Agosto 1997) que o escritor Mário Henrique Leiria proibiu o crítico José-Augusto França de «todo e qualquer uso, presente ou futuro, em forma escrita e mesmo oral, do seu nome». Foi nos idos de 1950, aquando da I Exposição dos Surrealistas. É só um exemplo de muitos que poderiam ser mencionados, especialmente eloquente pela ironia que julgo escusado aclarar. Naquele tempo era assim e ninguém se atreve a dizer que era mau. Não resisto a citar uma reveladora nota de rodapé: «Ao voltarem à Casa do Alentejo para uma conclusão da experiência efectuada — exactamente: o surrealismo e o seu público em 1949 — os surrealistas depararam com uma gente tresloucada pelo próprio sistema de percepção e incapaz de ouvir, sem se desencadear o pior, o fundamento da conclusão que se lhe levava. Também dispostos ao pior, os surrealistas declaravam que o gato caçado por P.O. e M. C. nos terrenos do Areeiro fora enviado no dia 20 do 5 à falta, provisória, de um elefante, contribuição de Mário Cesariny; que, quando em 6 do 5 se dissera: merda, era mesmo merda que se lhe quisera dizer, contribuição de Mário Henrique Leiria; que, se ainda havia quem quisesse saber por-que-é-que-é surrealista o surrealismo, comprasse acções do inferno e se metesse em casa pela chaminé da cozinha, contribuição de Henrique Risques Pereira». Ainda nos tempos da ditadura, a primeira edição portuguesa de A Filosofia na Alcova - «um livro pornográfico, protótipo de desmoralização» - deu azo a um processo que tornou arguidos o editor Fernando Ribeiro de Melo, o tradutor António Manuel Calado Trindade, Herberto Helder, Luiz Pacheco e o ilustrador João Rodrigues. Vem tudo escarrapachado na segunda edição da mesma obra. De resto, das edições Afrodite foram honrosamente proibidas de circular no país várias obras, das quais citamos o Manual do Erotismo Hindu e a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Outro exemplo memorável de purga moralista foi o que envolveu a primeira edição das Novas Cartas Portuguesas, cujas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foram enclausuradas no Portugal claustrofóbico da censura. Já depois do 25 de Abril há a assinalar o episódio que envolveu a edição de O Bispo de Beja, recentemente lembrado por Paulo da Costa Domingos no livro Narrativa. À época o Diário Popular dava conta de uma acção desencadeada pela hierarquia religiosa que culminou com a apreensão dos livros pela Polícia Judiciária. Estávamos em 1980. A mesma hierarquia censurou, já na década de 1990, um sketch humorístico sobre a Última Ceia, e não será abusivo pensar que terá influenciado a decisão do Governo português a não se fazer representar num concurso internacional com O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do Nobel da Literatura português. Mais recentemente, ainda antes do acesso de puritanismo que levou à apreensão do livro Pornocracia, de Catherine Breillat, numa feira do livro em Braga, a crítica literária Dóris Graça Dias acusou o jornal Expresso de lhe censurar uma crítica ao livro Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, e a Oficina do Livro, juntamente com a escritora Margarida Rebelo Pinto, interpuseram uma providência cautelar com o intuito de impedir a publicação do volume Couves & Alforrecas, Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto, do crítico literário João Pedro George. Temos agora o caso Bonifácio, cujo fim parece ter sido um pedido de desculpas do jornal Público ao clube de futebol Belenenses, tudo por causa de uma crítica a um concerto ocorrido no Estádio do Restelo. Entre pedidos de desculpa, proibições, providências cautelares, apreensões, pesa sempre o velho fantasma da censura. Alimenta-o uma péssima convivência com o espírito crítico numa sociedade cada vez mais automatizada, oligárquica, fundada numa escola tendencialmente tecnocrática, muito pouco interessada na dúvida, na criatividade que não é possível sem essa vontade de pôr em xeque. O moralismo e o puritanismo, o cuidado e o excesso de respeito que ainda nos perseguem são sintomas de que os anticorpos da liberdade estão longe da extinção. Mas são também sintoma de que a provocação ainda merece respeito, põe em sentido as virgens ofendidas. «Beliscando o cu das mulas» (Pedro Oom), a crítica ainda espicaça consciências. A astenia social geralmente apregoada, pelos vistos, não é um dado adquirido. Feridas no essencial – e o essencial português continua a ser Fado, Futebol e Fátima -, as massas ostentam o seu reaccionarismo, as elites patenteiam o onanismo que as estimula, os incendiários do espírito ganham terreno. A única diferença é esta: já não há nada que distinga o surrealismo, enquanto forma de expressão filosófica, da realidade vivida. Em Portugal isso é ainda mais evidente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pôr em xeque, não em cheque.

hmbf disse...

Agradecido.