quarta-feira, 15 de abril de 2009

CANCIONEIRO DA TRAFARIA


Com menos vinte anos d’esta
Vida, soubesse o que sei hoje
Dedicava-me à pesca!

Há praticamente trinta anos a &etc. dava à estampa o primeiro folheto da colecção Contramargem, mais propriamente “Maria! Não me Mates, que sou Tua Mãe!” – uma narrativa de cordel que Camilo Castelo Branco (1825-1890) mandou imprimir anonimamente com o intuito de escapar à falência. “Acto de contracultura admirável”, pois claro, mas explicado por uma vontade impossível de dissociar da mais básica necessidade material. As reedições sucederam-se e há não muito tempo a malograda Objecto Cardíaco apresentava-se ao mundo com a mesma prosa. A editora de valter hugo mãe finou e melhor destino não teve a colecção da &etc. Desta, restam vinte títulos ao dispor de coleccionadores dedicados, dos quais o último se intitula “Se a Lira Pulsas e o Pandeiro Tocas…” (1984), assinado por um tal de António Lobo de Carvalho (1730-1787), conhecido pelo cognome “O Lobo da Madragoa”.

Lembramo-nos dos factos a propósito do “Cancioneiro da Trafaria”, cujo título não se completa se a ele não acrescentarmos a meticulosa descrição que passamos a transcrever: “Eróticas, Mitologias de Borda D’Água, Burlescas Assim-Assim, da Matulagem & Pesca à Linha seguido de Alguns Cromos e Basbaques, pelo Graça, o Orfeu da Reboleira, que Nunes da Rocha dedica à memória do poeta António Lobo de Carvalho, o Lobo da Madragoa” (&etc., Fevereiro de 2009). Aí estamos nós, em pleno século XXI, retomando, renovando, reavivando a mais desbragada sátira, a mais picaresca crónica em verso de que foram mestres inolvidáveis, além dos acima referidos, Gregório de Matos (1636-1696), Tomás Pinto Brandão (1664-1743), Bocage (1765-1805), Guerra Junqueiro (1850-1923), entre outros.

Já no século passado, muitos poetas, alguns de uma seriedade assoberbada, devem aos primeiros cultores da menoridade a ousadia de um olhar que desbravou o caminho da tão propagada dessacralização da poesia, da dessublimação do poético e da desimportantização dos trovadores. Podíamos citar Cesariny (1923-2006), O’Neill (1924-1986) ou Assis Pacheco (1937-1995) como exemplos de grandes poetas onde encontramos com facilidade ecos do espírito crítico, da derrisão e de uma certa maledicência que caracterizavam os primeiros tempos. Testemunho despudorado a lembrar-nos que hoje tudo se mostra dissimulado pelas avessas, ou seja, aqueles que procuram erguer o archote da dessublimação – fazendo disso lei e virtude como se a poesia não fosse vício em essência e matéria - são, muitas vezes, os mesmos que se auto-sublimam e promovem em torno de uma suposta contracultura que, vai-se a espremer, produz apenas moleza de espírito e melancolia de pacotilha.

Valham-nos os Nunes da Rocha deste mundo – felizmente ainda vamos tendo alguns – com as suas rimas a tresandarem de vida. Quer no conjunto intitulado “Cancioneiro da Trafaria”, quer na parte subsequente que leva o título “Cromos & Basbaques pelo Graça, o Orfeu da Reboleira”, o que temos é uma caderneta de gargalhadas antiparoquiais, eivadas de erotismo e de ironia, que colocam a poesia ao mesmo nível do caricato, do grafito e da fadistagem. Tabernas, baiucas, tascas, oferecem o palco a canções que resultam numa arte poética fatal: «Insensível ao pôr-do-sol / E irritado como um cabrão, digo: / Que se foda a poesia!» (p. 12) Que o desabafo conclusivo não demova o leitor mais sério. Há nestes poemas muitas personagens, muitas situações, com as quais temos a aprender o tudo que a poesia tem a ensinar: «não é da vida que temos de fugir / Mas na literatura é que temos de entrar» (p. 33).

Entremos, então, sem descalçar os sapatos nesta literatura. Lá dentro, muitas musas dispensando o sacrifício de beijos contidos, vários cromos, nenhum santo, apenas o altar por sobre o qual se batem as cartas do baralho e a base dos copos de vinho. Oremos à santíssima TV, ícone moderno do Altíssimo, com os olhos esgalhados de curiosidade. Já dizia Epicuro que para se ser feliz bastam amigos, pão e vinho. Talvez também estes versos sejam do álcool, talvez também nós sejamos destes versos. Não sei. O que sei é que há fados onde a morte não sai fingida, a melancolia é a atitude de uma des-graça (sic) autêntica e «o que importa / é da alma a descompostura» (p. 40). Obrigado Nunes da Rocha. Parabéns Pedro Serpa. A capa é uma maravilha.
Escrito para o Rascunho.

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