domingo, 23 de novembro de 2008

A FACA NÃO CORTA O FOGO

Há quem busque definições para a poesia de Herberto Helder, mesmo quando, em jogos de retórica supérfluos, pretende fazer da definição uma não-definição, há quem importantize a obra a ponto de lhe querer bustos de pedra e hinos de papel, há quem não veja a obra para lá do poeta, quem se deite sobre o nome do poeta e aí adormeça a razão e o sentido crítico, há quem se deslumbre com um nome como se nesse nome brilhasse um sol que cega, há quem só de escutar palavras como boca e mãe (no plural) se lembre de poemas herbertianos e acuse, a plenos pulmões, plágio, plágio. Mas as palavras não têm dono e o poeta sabe disso. Por isso mesmo vai de bicicleta até à falésia, lança o anzol ao mar e pesca nos tempos longínquos e profundos o peixe da sua refeição. Tanto a inédita como a súmula estão inexoravelmente marcadas pela leitura dos primeiros gregos, onde outrora o fogo da paixão foi inventado e a poesia se fez corpo e ao corpo se deram atributos mágicos, poderosíssimos, que são os atributos misteriosos do amor, da paixão, da força com que as ondas rebentam. Não das ondas, mas dessa misteriosa força que as faz rebentar. E começa o novo com um velho provérbio grego: Não se pode cortar o fogo com uma faca. Porque nesta poesia escutamos essencialmente o ritmo, o ritmo da respiração, o ritmo cardíaco de um mundo que não está para lá de nós porque nós estamos integrados nele, a imagem do fogo atira-nos directamente para a paixão aludida num dos poemas finais, um dos melhores desta inédita, o qual começa assim: «li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, / quando alguém morria perguntavam apenas: / tinha paixão?» (p. 205). Eros, nos poemas iniciais, e Thanatos, mais para o fim, são, pois, as forças gregas que sustentam estes poemas (pelo meio há muita coisa quase sempre dispensável). Mas não admira que António Ramos Rosa tenha chamado a Herberto Helder poeta visionário e poeta órfico (“Herberto Helder ― Poeta Órfico”, in Poesia, Liberdade Livre, Livraria Morais Editora, 1962), alusões estupidamente decalcadas recentemente quando, a propósito deste livro, se ouviu falar de um poeta profético. Nenhuma profecia há em ser-se poeta e trazer à superfície do corpo os ritmos do mundo, como quem pesca do fundo de um oceano matérias antigas, nenhuma profecia há em mergulhar nos territórios ditos da dita loucura, ou quase, um pouco, e deles mostrar apenas o que as palavras logram tornar visível. Se há coisa que este poeta não é, essa coisa é um profeta. Sabe disso quem para lá das palavras aceita a respiração dos poemas, uma respiração indecifrável com a qual podemos apenas dialogar silenciosamente, uma respiração que não se anuncia nem adivinha, uma respiração com a qual lendo, que é o mesmo que dizer ouvindo, interpelando, tocando, estabelecemos acordos e associações íntimas. Joaquim Manuel Magalhães desenvolveu, num texto coligido em Rima Pobre (Presença, 1999), a ideia do poeta órfico, falando justamente de uma recorrência às dualidades, «uma crença nas separações e nas dualidades» que é aquilo, quanto a mim, que distancia a poesia de Herberto da confusão gerada pelas fusões modernistas. O poeta de Poemacto diz fêmea e macho, mesmo quando acrescenta: «a luz de um só tecido a mover-se sob o vestido / rapaza raparigo» (p. 144). Neste sentido, até apelando à reserva e ao recolhimento do poeta, será mais justo falar de Herberto como uma espécie de anacoreta embrenhado em alquimias várias, as quais resultam em poemas cabalísticos que inventam o ouro reinventando as origens. O eros que faz sangrar a ferida essencial, a ferida primeira, vê-se ameaçado pela morte, pede que a ferida não se feche, pede que o corpo continue a sangrar, «o corpo que é a sua própria ferida» (p. 145), espera o regresso de um resplendor, de um brilho que não se apague, redivivo, que é a obra a nascer para fora do corpo, do corpo para fora do corpo, mas de um corpo que se sabe, porque se reflecte, parte integrante do mundo. Esta inclinação, também sentida algures no tempo por alguns românticos e idealistas alemães ― lembremo-nos, a título de exemplo, de Novalis ou Hölderlin ―, ecoou de modo mais espontâneo e diversificado nas obras de dois poetas francófonos que se escutam amiúde no poema contínuo herbertiano. Refiro-me ao belga Henri Michaux (1899-1984) e ao francês Antonin Artaud (1896-1948). Sentir o pulso à poesia de Herberto é vislumbrar a orgia mística, espontânea, metafórica, orgasmática que já aqueles dois haviam experimentando anteriormente. Há nos três poetas um trabalho de pesquisa antropológico, uma espécie de arqueologia da metáfora, que, no caso específico de Herberto, faz do poema contínuo «uma cosmologia e do pequeno sistema que é o poema um universo» (Ruy Belo, “Poesia e Arte Poética em Herberto Helder”, in Obra Poética de Ruy Belo – volume 3, Presença, 1984). As 74 páginas de inédita para 133 de súmula num volume com 207 páginas, acabam por parecer demasiada inédita para pouquíssima súmula. Tendo em conta a edição de Poesia Toda saída em 1990, foram amputados os membros Cobra (1977) e O Corpo O Luxo A Obra (1978). Digo membros porque, neste caso, a obra é como que um corpo, é um todo ininteligível à luz de cada um dos seus membros separados. Que existam amputações, rasuras, transformações, é algo que concorda apenas com a própria maturação do corpo. E desconfio que, o tempo o permita, muitas amputações venham a suceder nesta inédita. É que torna-se imperioso dizê-lo: vários poemas de Uma Faca Não Corta o Fogo são manifestamente desinteressantes, debilitações do que ficou para trás, ainda que o que ficou para trás se chegue à frente numa dúzia, pouco mais, de poemas. O corpo que outrora criou uma gramática própria pressente-se a apodrecer e declara-o: «já nada é assombroso» (p. 165), «já nada me embebeda, / já não sinto nos dedos a pulsação da caneta» (p. 168), «acabou-se-me a língua bêbeda» (p. 176), «e porque estou morrendo aprendo / a unidade do mundo» (p. 177). Porquê disfarçar, então, aquilo que o próprio poeta declara em “resposta a uma carta”:

poesia, faz tempo que não conheço nenhuma,
quero dizer: ílima, íssima, poesia superlativa absoluta simples ou sintética indizível

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