domingo, 5 de outubro de 2008

A MÁSCARA DA ANARQUIA

A história é do conhecimento geral. Em meados do século XVIII operaram-se no mundo profundas transformações no domínio das relações laborais. O aparecimento das máquinas deu origem à indústria. As velhas actividades artesanais foram sendo substituídas, pouco a pouco, pela força das máquinas. As relações entre empregados e empregadores geraram conflitos de vária ordem, genialmente caricaturados por Charlie Chaplin no filme Modern Times (1936). Mas entre a chamada Revolução Industrial e o filme de Chaplin muita coisa sucedeu. Já no início do século XIX surgiu um movimento que se opunha radicalmente à exploração da classe operária e à completa substituição da mão-de-obra humana pelas máquinas. Liderado por Ned Ludd, o luddismo foi talvez o mais extremista dos grupos de protesto, invadindo fábricas, destruindo máquinas, etc. A repressão do poder instalado fez-se sentir com igual radicalidade. Muitos luddistas foram deportados, presos e enforcados. Foi neste ambiente social que o poeta Percy B. Shelley (1792–1822) erigiu a sua obra, nomeadamente a de cariz mais interventivo, político, panfletário, combativo. Geralmente catalogado como poeta romântico, Shelley nasceu no seio de uma família aristocrática. No entanto, desde muito cedo revelou comportamentos insubordinados. Quer quando se recusou, como caloiro na escola de Eton, a obedecer aos veteranos, quer quando foi expulso de Oxford após a publicação de um panfleto intitulado A Necessidade do ateísmo (1811). Entretanto tinha escrito dois romances góticos onde fundamentava a sua visão ateísta do mundo. Ateu e republicano em terras de sua majestade, Percy B. Shelley teve de sofrer na sua curta vida – morreu quando ainda não tinha cumprido 30 anos de idade – o desprezo dos «letrados», a vigilância e a perseguição do sistema político. Shelley, Um Exilado Entre Nós, o ensaio de Hélène Fleury que abre esta excelente edição da &etc., dá-nos conta do poeta subversivo, indignado, combativo, «inscrito nas lutas do seu tempo, irmanando-se com as vagas mais fortes, através de uma profunda empatia com os humilhados e os rebeldes» (p. 15). Também não esquece elementos biográficos importantes como o casamento com Harriet Westbrook, que acabaria por suicidar-se já depois da separação de Shelley, a relação com Mary Wollstonecraft Godwin (Mary Shelley) ou a amizade com Lord Byron, a perda da custódia dos filhos, o exílio em vários países europeus, entre outros elementos que nos ajudam a compreender o clima em que foram surgindo alguns dos seus escritos fundamentais: Queen Mab: A Philosophical Poem (1813), The Revolt os Islam (1817) e The Masque of Anarchy (1819). É este poema que se apresenta agora com tradução para português de Célia Henriques, mais cinco poemas escritos no mesmo ano, sob o mesmo ambiente. Poemas de circunstância, inflamados por acontecimentos históricos particulares, nomeadamente o massacre ocorrido na cidade de Manchester a 16 de Agosto de 1819, quando uma milícia a cavalo carregou sobre milhares de operários em protesto contra a ausência de condições mínimas de trabalho. Os alvos do poeta são os ministros dos Negócios Estrangeiros, da Justiça e do Interior. Mas o facto de ser circunstancial não nega a este poema uma universalidade que, infelizmente, parece estar para lá das barreiras do tempo: «O que é a Liberdade? — bem podeis dizer / Mais facilmente o que é a escravidão — / Porque o próprio nome dela cresceu / Como um eco do vosso. // É trabalhar e ter um salário tal / Que à justa mantém a vida dia-a-dia / Nos vossos membros, como numa cela / De habitação para uso dos vossos tiranos» (pp. 86-87). E continua este grito de revolta por uma Liberdade que se identifica com o Amor, com a Justiça, com a Sabedoria, com a Paz, com as condições de sobrevivência que escapam à maioria e são privilégio de uns poucos. Não admira, pois, que a liberdade fosse um obstáculo para os ricos. O que mantém ricos os ricos é a ausência de liberdade dos escravos. Ainda hoje assim é, neste tempo de recibos verdes, gerações 500, grandes superfícies comerciais, cartéis disfarçados de concorrência, administradores obesos e funcionários tísicos, neste tempo de contratos a prazo e prazos sempre contratáveis. Muito pertinente, a edição deste livro quando o novo Código do Trabalho torna ainda mais claras as assimetrias existentes entre as entidades empregadoras e os empregados.

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