quinta-feira, 22 de maio de 2008

MÁGOA DAS PEDRAS

Não é fácil escrever sobre a poesia de Joaquim Castro Caldas (n. 1956). Não porque seja uma poesia difícil – o que é isso de uma poesia difícil? -, mas porque os seus poemas encerram no âmago, enquanto entidades singulares em relação com o leitor, tudo o que possamos dizer acerca deles. Há uma transparência na poesia de Joaquim Castro Caldas que, muito frequentemente, a torna obscura. Recordo-me do poeta sentado, se a memória não me falha, no palco do café da Barraca. Recordo-me do poeta sentado, envolto numa nuvem de fumo, de copo de uísque na mão, a dizer/representar os seus poemas. Talvez seja aquele o ambiente natural desta poesia, uma poesia que nasce como uma voz que vem do fundo do corpo, palavras a pedirem uma pronunciação, vindo à boca como uma nuvem de fumo soprada no ar. (1974), Português suave (1978), Diz que até Jesus (1998), Impressões digitais dos deuses (2001), Convém avisar os ingleses (2002), Só cá vim ver o sol (2004), são alguns dos livros anteriores do autor deste Mágoa das Pedras (Deriva, 2008). Quem conhecer alguns daqueles livros sabe o que pode esperar desta poesia: construções alternando entre o verso e a prosa, uma derrisão tão melancólica quão desencantada, «uma saudade concreta», mas também, e talvez sobretudo, uma ternura surpreendente. Talvez os poemas mais conhecidos de Castro Caldas sejam aqueles onde as veias burlesca, satírica e irónica são reveladas sem apelo nem agravo. É também um poeta do amor, da denúncia do seu tempo, da memória, até da confissão. Esta diversidade no tom, concentrada nas vivências vagabundeantes do autor, não implica uma heterogeneidade que possa pôr em causa a coerência dos temas: os tiques caracterizadores da sociedade portuguesa actual ou as memórias da infância, amores e desamores, brevíssimas reflexões existenciais, entre outros. Mágoa das Pedras denota, em diversos momentos, uma marca elegíaca. A morte surge logo no primeiro poema, um poema em prosa intitulado um fôlego: «aqui não há morte, a vida recomeça, há só uma energia que muda de forma e mergulha, dá-se inteira como uma escrita, a fala» (p. 9). Talvez seja esta a justificação do sentido da poesia, a justificação do sentido da poesia neste livro específico ou da poesia como um todo. Os poemas finais falam de partidas, num tom quase de despedida, falam do passar dos anos, dos enganos e dos desenganos, uma espécie de balanço existencial, falam dos outros, da gente boa que ficou e da gente que partiu, porque a vida não se divide entre um passado, um presente e um futuro, a vida é um ir indo: «a gente aprende / o coração à lareira / que se fica a ir / e reacende / are que um dia / alguém se lembre» (p. 60). É nesta cadência do "vai-se indo", expressão popular que define todo um povo, que os poemas surgem entre a luz terna dos afectos e a dor sombria dos percalços. O gavetão das memórias é aberto, vêm à tona imagens das brincadeiras de criança, um quando perdido que não se renova, a aldeia, Lisboa, o luar da infância que nos protege a todos da «brutalidade do mundo» e a poesia, quem pode saber, como o pouco que resta desse luar. Os brinquedos estão agora escangalhados, a rebeldia dos amigos vestiu fato e gravata, foi à vida. Os amigos são talvez quem está mais presente neste livro, «os amigos puros» e «os velhos amigos», aqueles que já não estão, aqueles que estando é como se não estivessem, os poucos que ainda estão ou os outros que, já não estando, são talvez os que estão mais. Não sabemos se há nas pedras uma mágoa. A haver, essa mágoa só pode ser a da degradação do tempo, a da desumanização da vida, sobretudo da vida entre pares. Os serviços de SMS substituíram as cartas com sangue e cheiro, o dinheiro é um vírus que tudo infecta, «o amor é um chip e o egoísmo o seu disco rígido e de repente eu já não te conheço fora do site e andamos de satélite e uma dúzia de monstros impunes põe e dispõe da alma à humanidade e eu sinto-me assim uma coisa inútil o email cobarde» (p. 32). E este é um livro desencantado. Certamente um dos melhores de Joaquim Castro Caldas, indubitavelmente um dos mais convincentes livros de poesia portuguesa deste ano.

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