quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

BAGAGEM DE MÃO

A confiar na nota biográfica disponível na Wikipédia, Vítor Nogueira (n. 1966) publicou o seu primeiro livro de poesia, A Volta ao Mundo em 50 Poemas, em 1999. Seguiu-se, com vários ensaios pelo meio, a colectânea Senhor Gouveia (2006) e, agora, este Bagagem de Mão. À poesia de Vítor Nogueira já tínhamos feito referência a propósito de Senhor Gouveia, pequeno volume publicado, sem surpresa, pela Averno (editora de Manuel de Freitas). Talvez não seja displicente relembrar o facto do autor ser director do Teatro de Vila Real, selo duma colecção de Poesia Portuguesa Contemporânea, iniciada em 2005, onde foram dados à estampa, até agora, livros de Manuel de Freitas, A. M. Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Rui Pires Cabral, Carlos Bessa e Rui Pedro Gonçalves. Bagagem de Mão reúne dois conjuntos de poemas cujo elo de ligação é a cidade de Lisboa. No primeiro conjunto, intitulado Toponímia, encontramos 19 poemas que, de um modo sóbrio e sem qualquer tipo de exaltação poética desnecessária, retratam a capital portuguesa num percurso muito pessoal de ruas, alfarrabistas, lugares, esquinas, pessoas, calçadas, pátios, sítios, recantos, praças, travessas, facilmente reconhecíveis e identificáveis. Mas Vítor Nogueira não se limita a inventariar esses espaços geográficos, nem se restringe a uma mera evocação dos mesmos que poderia, de alguma forma, servir de pretexto ou sustento para a confissão lírica. Neste caso, o que encontramos é o olhar do visitante, o olhar daquele que habita apenas temporariamente os espaços referidos, é o olhar vagueado do intruso, daquele que, vindo de fora, de alguma forma nunca estará dentro, pois a sua condição é a de um “turista residente”. Esta condição ambivalente confere aos poemas um interesse que não é comum, pois aqui o que temos não é a repetição de uma perspectiva sobre a cidade – excelentes livros de poesia têm concedido tais panoramas -, aqui temos antes uma perspectiva, de certa maneira, nova, na medida em que é a óptica do forasteiro que se nos apresenta como sendo, ao mesmo tempo, a óptica dum deslocado. Mais interessante ainda é verificar que os poemas, de extrema lucidez e sem juízos dispensáveis, extravasam quase sempre a cidade, tornando-se esta suporte duma espécie de divagação que nos transporta para “perguntas sem resposta”, apontamentos ligeiramente irónicos sobre a nossa identidade, gestos denunciantes da condição social em que sobrevivemos. Leia-se, a título de exemplo, este A DESCOBERTA DA AMÈRICA: «Praça da restauração (letra minúscula, / 1640 já vai longe). / Cabemos todos nesta cidade perdida, Lisboa / inteira se preciso for. Há sempre espaço / para mais um neste ovo de Colombo. / E a democracia chega quase a ser bonita, / enfeitada com as cores da McDonald’s. // Andará talvez pelos sessenta o escritor / sem abrigo à minha frente. Alheio à esplanada, / tão espaçosa, tão capaz de fingir que ele não existe. / Invejo-o porque escreve sem parar, distante / dos meus versos encravados. Em redor, / o mecenato cultural dá-lhe dispensa de consumo / obrigatório. Mesmo assim, é quase sádico / o luzir do reclamo da Kentucky Fried Chicken. // Abandono, com remorsos, um escritor / mal abrigado. É triste dizê-lo, mas a Fnac / é agora a melhor das livrarias, a quase estúpida / razão de vir aqui marcar o ponto / durante as férias da Páscoa. Falta evitar / mais prejuízos no Continente que Colombo / por engano descobriu, a penúltima estação / deste calvário invertido, cujo cimo / é lá no fundo, o parque de estacionamento. // Eu, pecador, me confesso, expulso / pela escada rolante, enquanto a luz / vai surgindo estranhamente apetecível / no enlace da Segunda Circular» (p. 18). A tendência para o prosaico é evidente, nem outra coisa seria de esperar. O que realmente cativa no poema acaba por ser aclarado no segundo conjunto deste livro. Intitula-se esse conjunto Os Forasteiros Nunca Têm Razão, e é composto por mais 19 poemas. O que há de cativante no poema acima transcrito é a transferência desse sentimento individual de deslocação para todo um país, como se essa parte que já perdemos do que somos, quando penetramos num território que não é o nosso de origem, fosse também a parte perdida dum país que é já uma outra coisa qualquer, deslocada de si, perdida num qualquer labirinto em direcção a um futuro incerto, numa viagem temporal e espacial em direcção a um mundo «pequenino / como qualquer sala de estar» (p. 42).

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