segunda-feira, 21 de maio de 2007

A DIVINA COMÉDIA


Há uma dimensão de perversidade no cinema de Manoel de Oliveira que muito me agrada. Não é uma perversidade óbvia e directa, ao estilo de um cinema mais surrealista, nem tanto uma perversidade com intentos de ruptura social e política ou necessidades de escândalo moral. É antes uma perversidade que se esconde por detrás de uma subtil cortina metafórica, sobretudo irónica, com a lucidez de quem olha a humanidade com desconfiança, tanta desconfiança quanto a que merece um olhar lúcido sobre a presença do homem no mundo. Esse olhar é especialmente evidente em A Divina Comédia, filme estreado em 1991. O título, remetendo para a obra magna de Dante Alighieri, é já de si suficientemente sugestivo. Mais ainda se torna quando constatamos pouco ter o filme que ver com a obra em causa, não nos sendo legítimo, porém, negar entre ambos correlações difíceis mas não impossíveis de explicar. Também no filme há como que uma jornada espiritual pelos grandes conflitos configuradores das dicotomias fundadoras da civilização ocidental: sagrado/profano, santidade/pecado, bem/mal, entre outros. Para levar a cabo o empreendimento, Manoel de Oliveira recorre a personagens – históricas e ficcionadas - representativas, em termos emblemáticos, desses mesmos conflitos. Um filósofo (que aparenta ser Nietzsche, magistralmente interpretado por Mário Viegas) discute com um profeta (o grande Luís Miguel Cintra), supostamente autor de um V Evangelho que não passa de um livro de páginas em branco, a oposição da vontade humana à vontade divina, a beleza da mulher e da arte em confronto com o belo interpretado à luz das revelações sagradas. Por outro lado, Adão, perdido de amores por uma Eva arrependida, procura ajuda nos argumentos do filósofo com a intenção de reconquistar a sua amada, acabando o filósofo por se “atirar” descaradamente à Eva arrependida. Há ainda Jesus, o Fariseu e Lázaro, Maria e Marta (esta última recriada por uma Maria João Pires a fazer de si própria, loucamente entregue à sua arte), personagens de Crime e Castigo e Irmãos Karamazov, romances de Dostoiévski que são, para todos os efeitos, súmulas literárias dos conflitos morais inerentes à própria condição humana. Toda esta teia de relações só é possível porque o cenário da acção é uma casa de alienados cujos internos (re)encarnam obsessivamente as personagens em causa. Ora, é difícil não ver nesta casa de alienados uma parábola do mundo em que vivemos, tornando-se a mesma um microcosmo feito à imagem e semelhança da cosmogonia dantesca. A perversidade do filme reside precisamente na confusão que acaba estabelecendo entre o metafórico e o literal. Ao deslocar metáforas clássicas para um campo metafórico novo, o autor como que faz reviver o sentido clássico da metáfora, dando-lhe nova vida e vigor. Não se trata de entender aqui a metáfora no seu sentido mais pobre de ambiguidade, mas antes como uma transferência de sentido que não nega o sentido original. Ou, como recentemente li em Nelson Goodman, «a metáfora, ao que parece, é uma questão de ensinar a uma palavra velha artimanhas novas». Em A Divina Comédia, a palavra velha à qual se procura ensinar artimanhas novas é a palavra do pecado original. Cabe aqui lembrar João Bénard da Costa: «Este filme que começa com a serpente e acaba com uma pomba, é um filme que faz depender todos os conflitos do pecado original». No fundo, este pecado de estar vivo que é também o pecado de ir morrendo, poder-se-ia resumir a um paradoxo sem solução, alicerce de toda a alienação que perspectiva o mundo lucidamente: não acreditar em Deus obriga-nos a, pelo menos, desconfiarmos dos homens. Tragicamente, é esta a nossa derradeira comédia.

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