segunda-feira, 16 de outubro de 2006

463 TISANAS

Se quisermos fazer uma história da micronarrativa em Portugal, há dois livros absolutamente fundamentais e, de certa maneira, fundadores: Contos do Gin-Tonic, assim como a sequela Novos Contos do Gin seguido de Fábulas do Próximo Futuro, de Mário-Henrique Leiria (n. 1923 – m. 1980), e as Tisanas, de Ana Hatherly (n. 1929). Convém, no entanto, esclarecermos um pouco este ainda dúbio conceito de micronarrativa. A optarmos por uma tradução à letra, a micronarrativa será um conto mínimo, uma história onde situação e personagens se concentram num conjunto ínfimo de palavras – quando não numa única palavra. Tome-se de exemplo esta Aventura, do escritor brasileiro Luís Dill: «Nasceu.» (in Contos de Bolso, Casa Verde, Porto Alegre, Brasil) A relação entre o título e a acção enunciada sugere todo um enredo, focado num único episódio, cuja componente narrativa será difícil negar. Há na micronarrativa actual uma tendência para o jogo linguístico que a aproxima das experiências levadas a cabo pelos poetas ligados ao concretismo e aos movimentos da poesia dita experimental, mas muitas vezes a micronarrativa confunde-se também com o poema em prosa, uma confusão que não é assim tão recente se pensarmos, por exemplo, nos Petits Poèmes en Prose, de Charles Baudelaire (n. 1821 – m. 1867). A questão torna-se ainda mais delicada se considerarmos muitos epigramas, fragmentos, aforismos, de escritores variadíssimos, onde a inclinação para a história ou para o apontamento narrativo é mais que evidente. Dado o carácter intrincado do problema, parece-me razoável julgar micronarrativa todo o texto sumário que assente num princípio de informação, ou seja, todo o texto que envolva, implícita ou explicitamente, um sujeito acerca do qual qualquer coisa se predica. As Tisanas, de Ana Hatherly, são, quanto a mim, um desses excelentes exemplos onde para um só lugar confluem todos os géneros ou, se quisermos, subgéneros literários anteriormente referidos. Tratando-se de uma obra em construção desde 1969, data de edição das primeiras 39 Tisanas, não deixa de ser impressionante a homogeneidade que mantém desde o início. Esta homogeneidade só é possível enquanto reafirmação de uma heterogeneidade que surge patenteada logo nos primeiros textos. A autora enquadra o aparecimento das tisanas na sequência de um aprofundamento do budismo zen, remetendo-nos directamente para os contos zen - quiçá a mais original das formas narrativas mínimas. Nas tisanas mais recentes – recordamos que a edição anterior, datada de 1997, comportava 351 Tisanas - nota-se com clareza essa influência não apenas nos textos que obedecem a uma forma narrativa mais clássica, como naqueles iniciados pela expressão «era uma vez», mas também nos textos de carácter reflexivo e, por que não dizê-lo, reveladores de uma experiência de tipo proverbial: «Penso: os animais selvagens são mais felizes porque não têm receio de escolher: fazem o que fazem e pronto. Mas serão felizes? Não vivem eles, como nós, cheios de medo dos depredadores? Tudo o que vive está a caminho do terror do desaparecimento» (pp. 145-146). Várias tisanas mais recentes entram em diálogo com autores de obras distintas - Mallarmé, Keats, Walter Benjamin, Kafka, Schopenhauer, Lou Andreas Salomé e Rilke, Rothko, Picasso, Francis Bacon, Bach, Strauss, H. G. Wells, Chaplin, Buster Keaton, etc -, outras aproximam-se da escrita diarística, com referências a cidades – Varsóvia, Antuérpia, Las Palmas, etc. – e situações e gestos quotidianos – do telespectador ao interveniente num festival de poesia. Mas os momentos mais interessantes, quanto a mim, continuam a ser aqueles em que a narrativa se deixa perder na vontade de experimentar. Ou seja, aqueles momentos em que a poesia acontece na respiração de quem narra: «Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam sua fúria com sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós» (p. 155).

Sem comentários: