quinta-feira, 8 de junho de 2006

IMITAÇÃO DE OVÍDIO

Alberto Pimenta (n. 1937) é um dos mais notáveis poetas portugueses. Professor universitário, ensaísta, autor de alguns dos textos mais provocatórios alguma vez editados em Portugal – basta lembrar Discurso Sobre o Filho-da-Puta -, costuma ser encaixado na prateleira dos poetas experimentais. Como se todo o poeta, pelo menos o bom, não fosse experimental à sua maneira, esta será apenas mais uma configuração histórica cujos intentos acabam sempre por estigmatizar obras que vão muito além de quaisquer rotulagens possíveis. Há, sem dúvida, uma “componente vanguardista” na poesia de Alberto Pimenta, mas essa componente sempre se revelou mais nas opções formais, com consequências óbvias ao nível da expressividade poética, do que nas temáticas abordadas. Essas, talvez nos seja legítimo dizê-lo, assumem uma clara inclinação ao mesmo tempo política e reflexiva. Ao contrário de outros poetas ditos “vanguardistas” ou, se quiserem, “experimentais”, Alberto Pimenta nunca impediu que a sua poesia fosse também a expressão do seu tempo. Essa é, de certo modo, a sua grandeza, na medida em que logra uma consistência que escapa a grande parte dos poetas mais fascinados pela exploração lúdica da palavra e da linguagem poéticas. Imitação de Ovídio, o seu mais recente livro de poesia, manifesta inequivocamente esse lugar de encontro entre o concreto e o abstracto, esse lugar de «pura ressonância» (p. 28) que, ao fim e ao cabo, é a própria vida. Em quatro poemas de recorte excepcional, encontramos neste livro, principalmente, um olhar sábio e sem contemplações sobre um tempo que é o nosso. O tom, por vezes, aproxima-se do cáustico. Vale a pena a citação: «77% destas damas / do tempo presente / sabem o quê? / e que é que não sabem? / que julgas? // fazem terapia / por causa / dum trauma infantil, / com um senhor de gabardine. / e vão regularmente / ao ginecologista / e ocasionalmente / à vidente e ao astrólogo / pela mesma razão. // pensam em deus / especialmente / à noite /pedem-lhe sempre / a cura dos males, / que lhes acalme as feridas / como um penso, / mas não adianta pedir / os bens transcurados / ao sol e à lua / da vida. // conhecem / a cabana da praia / com o mar a as 3 estrelas incluídas: / é pouco. // vão / aos desfiles de cães / a todos / e nada. // vão / às pastelarias / a todas / e nada. // vão / aos cabeleireiros / a todos / e nada. // suportam / isto / porque / julgam / que há-de passar. // e é verdade. // vão / às farmácias / a todas / e nada. // vão aos supermercados / a todos / a aí é pior ainda / porque / esses centros de ócio e comércio / encontram-se numa estagnação / que faz / os cogumelos / crescer nas paredes. // vão aos cinemas / naturalmente. // nada nada. // suportam / isto / porque julgam / que há-de passar. // e o mesmo / parece / que sucede com o resto // nem Júpiter em órbita / nem a trindade do sol / nada lhes vale» (pp 37-40). O que mais fascina nesta “poesia da saturação”, permitam-me o termo, é a força que dela se retira, uma velocidade atroz onde todas as palavras estão no sítio certo, onde nada está a mais, onde nada é desperdício. Só um grande poeta consegue escrever assim, sendo superabundante no básico (necessário), extraindo o essencial do aparente, libertando as palavras, «dispositivos / apenas sanitários» (p. 52), na dominação que sobre elas exerce. E se há uma segunda pessoa nestes poemas, essa segunda pessoa, esse amor a quem se fala, pode bem ser o que resta da poesia num tempo que cada vez mais dela prescinde: «poesia / propriamente dita / não há meio de acontecer, / é como matar um pássaro / ontem / com uma pedra / atirada hoje» (p. 59). Em suma: um grande livro de poesia, para ajudar a (des)organizar dentro de quem o leia o caos que nele se instala.

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