quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

POEMAS

Para não tornar o texto demasiado fastidioso e extenso, vou direitinho ao assunto: considero Pier Paolo Pasolini (n.1922 – m.1975) um dos cinco grandes génios (poéticos) do século passado. As razões da minha consideração, procurá-las-ei expor sinteticamente a seguir. Mais do que outro poeta do séc. XX, Pasolini esteve à frente do seu tempo na proposta de uma poesia que justapusesse os pólos dicotómicos da nossa civilização: amor/ódio, barbárie/civilização, sagrado/profano. Os termos, que são do poeta, coloco-os assim não por acaso. Na sua poesia encontramos elementos muito concretos que podemos fazer equivaler a cada um daqueles termos. Em tom talvez demasiado simplista diria que o amor à barbárie manifesta-se, na poesia do poeta italiano, como uma espécie de nostalgia de um sagrado que foi profanado por uma civilização tecnológica e estupidamente racional merecedora do nosso ódio mais profundo. Poeta da barbárie, poeta do ódio, significa, neste caso, dizer-se poeta metafísico, mitológico. Os Poemas desta auto-antologia foram coligidos entre 1954 e 1964, depois da aventura em dialecto friulano acerca da qual o autor de As cinzas de Gramsci disse o seguinte: «Através do friulano, aprendi o que as pessoas simples, por meio da sua linguagem, acabam por existir objectivamente, com todo o mistério do seu carácter camponês». É deste mistério das pessoas simples que se preenche a nostalgia de Pasolini, em exílio na capital do seu país a partir de 1948. Na cidade, que será sempre em Pasolini um contraponto civilizacional da barbárie campesina, vagueará o poeta nos «bairros, tugúrios, pontes, antros» (p. 203) por entre «mafiosos magarefes, / engraxadores ferozes, caixeiros invertidos, / despeitados guarda-freios, tísicos ambulantes, / trolhas meigos como cães» (p. 153), enfim «gente // servil que obedece a cada chamada / que aos seus senhores apraz fazer, / adoptando, sem suspeita, os mais infames // hábitos das vítimas predestinadas» (p. 221). Produtos de uma detestável sociedade de consumo, onde a luta perdida dos camponeses se esvai nos interesses hipócritas dos citadinos, essas gentes são o espelho da miséria a que se dará o nome de civilização. O conceito de civilização aparece assim como um disfarce de uma certa realidade, não apenas italiana, mas hoje universal. A palavra «miséria», que se repete juntamente com a palavra «dor», em inúmeros versos destes poemas, estrema, então, o alvo contra o qual os poemas longos em tercetos, primeiro, e os versos livres, depois, lançam todo o seu ódio: «Ah, burguesia / sim, quer dizer hipocrisia: mas também / ódio. O ódio exige vítima, e / a vítima é só uma» (p. 263). À ressonância comunista, pela veia de Gramsci, acomoda-se a reverberação mística. Resultado: um proscrito em todas as frentes. Odiado pelas/pelos comunas, tanto quanto pelos fascistas: livre no seu sempre insatisfeito pessimismo, na sua visão sombria do real, no seu anti-catolicismo mais religioso do que político (isso mesmo, já que em Pasolini igreja, bem distante do espírito religioso, equivale à institucionalização do inquisitório): «Milhares de homens sob o teu pontificado, / diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas. / Tu sabias que pecar não é fazer o mal: / não fazer o bem, isso sim, é que é pecar. / Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste: / não houve quem mais pecasse do que tu» (In A Um Papa, p. 239). Do campo para a cidade, da dor citadina para a nostalgia do campo, temos o princípio da tal genialidade de que falava no intróito: a percepção de um mundo acelerado no processo do seu (quase) inevitável arruinamento. Motor potente desse processo, a sociedade de consumo, que hoje se afirma no seu máximo e globalizado esplendor, é-nos cantada assim, por alguém que há 46 anos já nos vivia o de agora: «O mundo ainda me foge, já não sei dominá-lo, / foge-me, ah, a cada instante que passa é diferente… // Outras modas, outros ídolos, / a massa, não o povo, a massa / decidida a deixar-se corromper / debruça-se agora para o mundo, / e transforma-o, mata a sede nos ecrãs, / nas televisões, horda impura que irrompe / com avidez pura, desejo informe / de participar na festa» (pp. 254-255). P.S.: a edição é bilingue e a tradução, de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, não rima. Mas prima...

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