sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

CONTRABANDO

Residindo em Portugal desde 1984, Gerrit Komrij nasceu na Holanda no dia 30 de Março de 1944. Crítico, ensaísta, tradutor, romancista, poeta neerlandês dos mais estimados, polemista incorrigível, foi-lhe atribuído o maior prémio literário holandês – o prémio P.C. Hooft – decorria o ano de 1993. Organizador de Uma Migalha na Saia do Universo, antologia de poesia neerlandesa publicada pela Assírio & Alvim em 1997, Komrij havia já levado a cabo um trabalho estóico de recolha da poesia do seu país desde o século XII ao século XX. Contrabando, a antologia agora publicada entre nós, passa em revista a obra poética de um autor que se estreou em 1968 com Hemisférios de Magdeburgo e Outros Poemas. Traduzidos por Fernando Venâncio, os cerca de 40 poemas que compõem esta antologia poética resultam numa amostra breve duma obra extensa mas coerente com o programa que traçou desde o início. Do posfácio pelo punho de Arie Pos sublinho o seguinte excerto: «Em poemas programáticos, Komrij negava à Poesia qualquer aspiração elevada ou sobrenatural. Era como praguejar na igreja – calvinista, entenda-se. Só mais tarde a crítica começou a discernir ideias e consceitos-chave naquela vertiginosa produção poética. O vácuo, o vazio, os ambientes claustrofóbicos, as imagens de pesadelo, o absurdo, toda esta casa de fantasmas (com quartos, caixas, gavetas, espelhos, mortos-vivos e esqueletos) servia, no fundo, para ao mesmo tempo mostrar e domar o caos do mundo moderno do verso» (p. 95). Se é verdade que muitos poemas parecem desprovidos de sentido, menos verdade não é que o registo poético de Komrij nunca cede ao nonsense puro e duro. A intenção é outra: dar a entender que não existe intenção. Ou seja, estabelece-se ente o autor e o leitor uma espécie de jogo cínico onde tudo é, no fundo, aquilo que não pretende ser. Ou, pelo menos, que não pretende parecer ser. As formas clássicas eleitas pelo poeta suportam a proclamada ausência de conteúdo: «Conteúdo? Nada, só borras, só fundo. / Era uma poesia de tostão furado» (p. 47). Poderá assim negar-se a presença do autor no poema? Julgo que não. Mais do que um anti-lirismo sem saída, o que vislumbro nestes poemas é um sarcasmo provocador que logra colocar o leitor na posição incómoda do analista banido. O que se nega aqui é a possibilidade de chegar ao poeta pelo poema, ainda que o poema seja, em certo sentido, revelador de um estado (de alma?) do poeta: «É sempre o mesmo o que persigo: / Um belo moço, um belo livro. / Acaricie pele ou lombada, / Tocarei sempre só fachada» (p. 45). O poema é uma fachada, uma caixa vazia (imagem recorrente) onde nada se dissimula e tudo simula. O poeta é um fingidor, pois então. Mas é um fingidor que se espelha numa imagem de si. No fundo, o poeta é apenas a sombra que sabe não haver outra essência que não essa mesma: sombra, sombra de sombra, para no final vermos nada mais que a morte no nosso próprio rosto. Superação do essencial, esta poesia é, igualmente, uma superação do real. Não pelo surreal, mas pela assumpção de que o real é coisa esguia, absurda, matéria em permanente construção, lava. A fechar, Uma bola de sabão: «Lençóis, em tempos já o termo bastava. / Acabada a guerrilha, feitas a bulha, / Programadas as próximas conquistas – O sono apenas um mudar de agulha - // Um mínimo instante de desafogo - / E de novo guerra naval em seco, / Ondulantes lençóis, e virulentos - / Projecto de cidade sem um beco. // O que tão verdadeiro era, chiça, / Um jogo a sangrar, um objecto loução, / Uma jóia da coroa, é hoje parva, / Insignificante recordação» (p. 85).

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