quinta-feira, 19 de maio de 2005

SOL A SOL

Passados 40 anos sobre a publicação do seu primeiro livro, Lírica Consumível (1965, Prémio de Revelação da APE), Armando Silva Carvalho (n. 1938) reincide na poesia com um conjunto de poemas a que deu o título Sol a Sol. Repare-se na ausência de preposição. Remetendo directamente para a passagem do tempo, pode, no entanto, indiciar outros sentidos. E, de facto, parece ser essa a leitura mais congruente. Na poesia deste autor sempre esteve presente uma intenção cosmogónica que parte de um princípio, não necessariamente dualista, mas antes oposicionista. Tal princípio leva a um entendimento da realidade e da natureza como um todo dinâmico cuja essência será, precisamente, a da oposição de cada coisa consigo mesma. O real é contraditório, assim como qualquer coisa que faça parte desse real. Nomeadamente o homem. Da mesma maneira, tudo parece ser uma extensão de tudo. A utilização constante da palavra «pedra», com toda a carga simbólica que o termo acarreta, é talvez o traço mais evidente disto mesmo. A pedra é, na poesia de Armando Silva Carvalho, uma espécie de arquétipo da vida, um microcosmos que contém a essência do mundo. E o poeta é o tradutor dessa essência: «Lentamente traduzo a ruptura do mundo / Com o novo século. / Escrevo com os olhos ardidos / Pelas novas visões do passado. / Levanto um braço e procuro / Mais uma palavra suada. // Faço o trabalho no brilho embaciado / Da noite. / Retiro lentamente da cabeça / Incrustações de vícios / Pequenas recordações de males menores / Ácidas partículas. // Sorvo o tédio. / Agora que o silêncio é uma crosta de sangue / Nos meus ombros / Recomeço a coçar-me. / Valerá a pena? Não faço disso a festa. / Sou simples. / Sou o intermédio» (p. 23). Esta poesia é uma síntese constante das oposições essenciais da criação poética: a mais torrencial imaginação anda de mãos dadas com um olhar atento sobre o real, sobre o quotidiano, a ironia abraça a melancolia, o físico bate-se constantemente com o metafísico. Eco das coisas do mundo, do visível, do audível, das sensações que captamos do mundo, a escrita é também uma forma de sentir o corpo das coisas. E esse corpo só pode ser: «Tudo o que a vista toca, a língua cheira, / O ouvido sente, a pele escuta, o nariz fita» (p. 31). Não estranhemos que títulos como A BILHA DE GÁS ou FERRO DE ENGOMAR convivam com outros como O CANTO ESCREVE O CISNE e A MONTRA DO SANGUE. «Não sou desses poetas de íris revirada / E testículos leitosos / Que se satisfazem com um uísque / Uma mão de prata / Na braguilha / E um jantar no terraço à luz clara da lua» (p.82) - declara o poeta num poema intitulado O NEGRO. Armando Silva Carvalho é antes um desses poetas que teimam em olhar o mundo pelos seus próprios olhos, vendo o outro rosto que é o rosto de si mesmos nas coisas, porque das coisas àquele que as vê vai todo um trabalho de tradução. É esta a sua PEDAGOGIA: «Contar por cabeça económica / Como tu dizias / Não nos faz mais altos / Nem nos põe de pé, míticos e visuais. / Mas sem a noção de altura / Resolvida / Nunca o ser humano chegará ao tecto de qualquer / Mundo. / Deste ou doutro a haver. // Se atendermos ao modo / Como a natureza humana vai dispondo / Das suas coisas / E a Natureza começa a dispor das dela / Humanos Incluídos» (p. 124). Abrindo com uma homenagem a Fiama, Sol a Sol está em permanente diálogo com outras obras e com os autores dessas outras obras (Gastão Cruz, Ruy Belo, Alexandre O’Neill, Fernando Pessoa, são apenas alguns dos visados). Esse poema de abertura fica em aberto, parecendo alongar-se no interior dos poemas subsequentes, a maior parte deles datados (entre 24.7.2004 e 19.10.2004). Ofício diário, este Sol a Sol é uma visão reflexa e reflexiva do mundo. A memória, quando aparece nestes poemas, é sempre em forma de pensamento sobre o presente. E o presente, mesmo o mais imediato e quotidiano, surge como uma espécie de eco do passado. Filha da terra e do corpo, esta poesia é a pedra que o poeta atira ao leitor.

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