quarta-feira, 6 de abril de 2005

MAR ADENTRO


Mar Adentro, o filme de Alejandro Amenábar, deixa-me com alguns nós na garganta. Tento desatá-los e não consigo. Nascido na Coruña em 1943, Ramón Sampedro ficou tetraplégico na sequência de um mergulho mal calculado. Preso a uma cama desde os 25 anos, ocupou-se a olhar o mundo por uma janela, a escrever poemas (outra forma de olhar o mundo por uma janela) e a lutar pelo direito a pôr um termo ao seu sofrimento. Lutou pelo direito à morte, a única esperança par uma vida digna. Só com uma grande dose de cinismo, chamemos-lhe assim, poderemos pôr em causa os objectivos daquele homem. O problema da eutanásia é um problema demasiado complexo se o pretendermos pensar como um problema moral, ético, religioso, político. Mas para quem pretende apenas uma "vida digna" (aceite-se a subjectividade do conceito), como Ramón pretendia e julgava não ter nem conseguir conquistar, o problema da eutanásia deixa de ser um problema. Passa a ser uma forma de esperança. Repare-se que Ramón, para qualquer um de nós, jamais poderia ser considerado um inválido, sem outra capacidade que não fosse a de respirar e estar vivo. Ele não tinha apenas um coração a bater-lhe no peito. Tinha um cérebro de onde saíam frases inteligentes, sóbrias, escritos libertadores - Cartas Desde el Infierno, Planeta, 1996 - e poemas, alguns deles extraordinários, reunidos em Cando eu Caia, Editorial Xerais:

Su mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras:
más adentro, más adentro,
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.

Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto
para seguir con mi boca
enredada en sus cabellos.

Decidiu levar a cabo uma luta que ninguém senão o próprio poderá saber se lhe vinha mais do coração ou do cérebro. Era uma luta por aquilo que ele tinha como sendo um direito essencial: o direito a morrer. Para Ramón Sampedro o direito a morrer não era muito diferente do que é para qualquer um de nós o direito a viver, ou seja, o direito à felicidade. Não é a felicidade o objectivo último dos homens, ainda que por felicidade os homens possam entender as mais variadíssimas coisas? Pois bem, aquele homem não tinha como ser feliz estando vivo. Por isso queria morrer. Conseguiu alcançar o seu objectivo no dia 12 de Janeiro de 1998. Hoje fazem-se filmes sobre ele, tecem-se os mais diversos comentários acerca dos seus escritos, do seu testemunho, inflamam-se as mais elevadas discussões em torno da uma vida e de uma decisão, a de pôr termo a essa vida. Alejandro Amenábar achou que isto era suficiente para transformar uma vida num filme, talvez imbuído das mais louváveis intenções. É, sem dúvida, um filme perturbador. Consegue levar às lágrimas qualquer um. Só não sei se gosto disso. Ou se gosto disso assim. É que no fim, parece-me, devíamos todos ficar muito felizes por aquele homem ter, finalmente, logrado os seus objectivos. E ficámos? Eu, confesso, o mais que consegui foi ficar perplexo comigo mesmo.

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