sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Migrações do Fogo

Apesar de ter publicado o primeiro livro apenas em 1990 (Dois Sóis, A Rosa – a arquitectura do mundo), Manuel Gusmão (n. 1945) é hoje por muitos considerado uma das vozes mais importantes da poesia portuguesa contemporânea. Não que isso importe, mas o facto é que a maturidade da sua poesia tem muito mais a ver com os poetas da sua geração (António Franco Alexandre ou Joaquim Manuel Magalhães, só para dar dois exemplos) do que com as diversas vozes poéticas que vieram à tona na década de 90 do século passado. Para o caso, esta discussão é ainda mais irrelevante porque a poesia de Manuel Gusmão caracteriza-se, desde logo, por uma “intemporalidade” que a coloca acima de qualquer classificação canónica que toda a grande poesia dispensa. Olhando para o título deste seu mais recente livro, Migrações do Fogo, vêm-nos inicialmente à ideia a noção de um movimento cíclico. Talvez não seja de todo descabido pensarmos no conceito nietzscheniano de eterno Retorno: um ciclo onde tudo volta, onde o Mesmo volta; e que volta ao mesmo. «Tudo parece ter outra vez começado. (...) // Recomeçou: retrocedendo, internou-se outra vez / no poema (...).» (p. 11) Assim escreve Manuel Gusmão no primeiro poema - Como Coisas Caindo -, da primeira parte - Alguém Perdendo-se – das três que compõem Migrações do Fogo. As restantes partes, intitulou-as o poeta de Na Noite Das Imagens e Canção Última. Importa saber então a que se refere o poeta quando fala de um fogo que migra: à poesia, à memória, ao amor, à vida, ao próprio tempo? Provavelmente refere-se à «incessante migração das formas do mundo» (p. 34). Por «formas do mundo» entende-se, principalmente, as imagens que povoam os poemas - «estranhas esculturas do tempo» (p. 39). Temos assim que o tempo é o movimento das imagens, o «ritmo cego que não enlaça já ninguém» (p. 26) mas guia aquele que escreve. Daí a recorrência às metáforas do cinema e da música, das imagens em movimento, mas também à noção de labirinto: «O migrante: é ele o labirinto.» (p. 33) Talvez o labirinto possa ser encarado como a história do mundo, sendo que aí o homem ocuparia o papel de «migrante de si mesmo: aquele que perdendo-se continua. / aquele que continua a construir o labirinto // das grandes migrações; o antiquíssimo livro do exílio // em que de si e dos seus se vai perdendo.» (p. 87) Desta forma, os poemas serão como que pequenos filmes que recolhem as imagens, as vivênicas, a experiência, a história do mundo que somos nós. Voltamos ao conceito de eterno Retorno, no sentido em que Deleuze o interpretou: o voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo que devém. Ou seja, a essência da história é esse «retorno» sem origem, entendido como movimento perpétuo, contínuo, das coisas do mundo, do poema. «Eu defendo que a poesia é também uma forma de pensamento.» - declarou Manuel Gusmão numa entrevista à revista LER (n.º 54, 2002). De facto, encontramos nesta poesia uma atitude reflexiva que nos impele para um trabalho hermenêutico de índole filosófica. Temos aqui, talvez, uma espécie de fenomenologia do tempo. Porém, mais do que reflectirem o tempo, estes poemas – e, podemos arriscar, toda a poesia deste poeta – são um reflexo da essência do tempo, captando os seus movimentos e racionalizando-os numa pluralidade de perspectivas. Por detrás de uma estética, esta poesia de Manuel Gusmão esconde também uma ética, uma espécie de último folgo humanista que nos remete de novo para a ideia de apenas ao homem caber a sua própria salvação: «Finita e imortal, tu sabes: é a imperfeita perfeição dos corpos / a matéria imemorial que inventou a música ou o amor. / Paga o preço ao espírito, inventa um deus se te perdeste / no mercado e chegaste atrasado ao encontro, // mas não esqueças longa e leve a dança da luz nos corpos / graves. Só eles caindo conhecem a queda que voa. (...) // Paga, paga a morte que vem, para que venha / e não se atrase.» (p. 32) Fica, então, entre outras, uma ideia final: a de que enquanto vamos caindo na direcção da morte, há imagens que passam, partem e tornam a passar por nós, imagens que vão pasando, como num filme, tornando a vida apenas inteligível a partir de uma noção de movimento, noção essa fundadora da própria essência do mundo. Origem sem origem, nascimento e destruição, assim nos é apresentado o mundo na poesia de Manuel Gusmão. Porque tudo o que é, não é estático, vai sendo. A complexidade desta poesia exige, de facto, uma predisposição que nem todo o leitor terá. Porém, não será difícil encontrar, aqui e acolá, poemas cuja força plástica e metafórica poderão cativar mesmo o leitor mais carente de “coisas simples”.

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