terça-feira, 5 de outubro de 2004

Berçário

A colecção Uma Existência de Papel, das Quasi Edições, tem vindo a crescer na rota de uma das mais importantes colecções de poesia portuguesa. Essa importância advém não apenas do facto de ali encontrarem morada novos poetas portugueses (Vasco Gato, Rui Lage, Pedro Sena-Lino, José Rui Teixeira), ombro a ombro com alguns consagrados (José Régio, António Ramos Rosa, Fiama Hasse Pais Brandão, Ana Hatherly), mas também da criteriosa selecção editorial que deixa perceber uma forte inclinação por vozes mais nostálgicas e metafóricas. Se as tendências que uma colecção denota não determinam, por si só, a topografia sentimental de um livro que dessa colecção faça parte, elas servem, mais que não seja, como princípio de um possível enquadramento territorial desse livro, ainda que sob risco de uma tipificação redutora e preconceituosa. Berçário, o segundo livro de Rui Lage (1975), parece-me um óptimo exemplar dessa poesia mais permeável à fulguração de corpulentas imagens do ponto de vista metafórico: «A pele é um passeio breve / sob a lã do firmamento / desde o rio subindo / desde o prado descendo.» (p. 24) Mas o que realmente espanta nestes poemas é o domínio rítmico, cuja natureza deve-se, provavelmente, quer a um depurado trabalho da linguagem, quer à espontaneidade de uma respiração que logra transfigurar os significantes mais comuns intensificando-lhes o sentido: «Numa mão a enxada / na outra o violino. / Ao fim do dia o violino pesa / tremendamente, / a enxada repousa magoada de terra, / guardada pelos ninhos debruçados / sobre a luz da manhã.» (p. 37) Refira-se, então, que estamos num campo afectivo que seduz pela forma como arrisca na irredutibilidade da memória a uma mera descrição do passado. Tal como o título deste conjunto de poemas indica, retoma-se aqui o tempo perdido, as origens, a primeira infância, num conjunto de imagens que rejeitam totalmente uma cristalização do tempo: «Oxalá se perdesse, a memória, / atrás de alguma colina, mas ei-la / de novo, servil como um pequeno cão de rua, / roçando-se de encontro / aos meus joelhos.» (p. 60). Podemos assim concluir que Berçário tem para nos oferecer um conjunto de poemas que nos situam naquele lugar onde o ritmo, a respiração, assenta numa musicalidade que revela a verdade de um sentir, de uma certa forma de sentir. Essa certa forma de sentir exige do leitor uma certa predisposição, sem a qual, parece-me, torna-se difícil captar-lhe «o peso incerto do coração».

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