sexta-feira, 18 de junho de 2004

O VAGABUNDO DO DHARMA

Han-Shan chega a Portugal numa belíssima edição da Cavalo de Ferro, com tradução de Ana Hatherly. É importante começar por realçar o extremo e inquestionável gosto estético desta edição que faz acompanhar o original de cada poema, à semelhança do que acontecia na edição francesa, por uma versão em caracteres modernos, uma tradução literal e uma versão poética. Dado o carácter aberto e subjectivo da tradução, torna-se quase irresistível ao leitor arriscar a sua própria construção do poema como se de um lego se tratasse. Ana Hatherly, no prefácio, fala justamente do acto de traduzir estes poemas como uma "re-invenção" ou uma "reciclagem". Estamos, portanto, não apenas perante um mero livro, no sentido convencional, mas também perante a possibilidade de transformar a leitura numa espécie de jogo poético. Não se sabem ao certo muitos dados biográficos acerca deste poeta chinês, cuja vida inspirou ao longo dos séculos imensas histórias tão lendárias quão verosímeis. No prefácio à edição francesa dos "25 poemas de Han-Shan" (1974), da responsabilidade de Jacques Pimpaneau, refere-se a probabilidade de ter vivido no século VII, mas há quem o situe entre os anos de 630 e 830. Poeta eremita da dinastia Tang, foi ganhando com o tempo a fama de indivíduo excêntrico, louco asceta, espírito rebelde. Em suma, um espírito livre. E é precisamente esse espírito independente o que mais se reflecte na sua poesia: "Não desejo o caminho do mundo / Sua paixão não me atrai". Porém, talvez não seja má ideia começarmos por enquadrar a sua poesia no significado que terá tido no ocidente. O século passado foi profícuo em vanguardas literárias e artísticas que se estruturaram a partir de alicerces legados pelas mitologias ancestrais. Estou em crer que uma compreensão mais profunda de certas correntes literárias não pode deixar na penumbra tais aspectos, estejam eles mais ou menos evidenciados nas obras dos autores que constituíram esses mesmos movimentos. Tome-se, a título de exemplo, o surrealismo. Será possível compreendê-lo nas suas profundezas sem pensar o quão impregnado está dos mais diversos misticismos, hermetismos e mitologias? Julgo que não. Vejam-se as obras de Artaud, António Maria Lisboa, no caso português, ou, noutro contexto expressivo, Max Ernst. Está nelas presente todo um universo simbólico, linguístico e metafísico que remete directamente para um passado longínquo, repleto de imagens e conceitos mitológicos. Outro exemplo paradigmático é o da "beat generation", fulgurante em meados do século passado nos Estados Unidos da América do Norte, de onde saíram escritores como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady. Encontramos nessa geração de escritores toda uma atitude Zen que virá a desembocar na subcultura "hippy", no culto da liberdade e do despojamento material. Se foi o tradutor inglês Arthur Waley quem introduziu no ocidente o poeta chinês Han-Shan, terá sido Gary Snyder, um outro "beatnick" famoso, quem mais se deixou por ele impressionar, levando-o à letra na sua própria vida. Tal como não me parece possível compreender com profundidade o surrealismo sem o perspectivar na reforma de uma herança mitológica, também me parece difícil penetrar nos verdadeiros motivos da "beat generation" omitindo o papel fulcral que o Budismo Zen aí terá representado. Será precisamente neste universo criativo que a voz de Han-Shan mais ecoará a ocidente. Se ontologicamente não anda muito distante dos princípios confucionistas, esteticamente terá sido assaz revolucionário para a época. Percebe-se na sua poesia, obviamente por via da tradução aqui levada a cabo, uma linguagem descomplexada e livre: "Meu coração lua de Outono / Verde lago brilhante imaculado puro". Porém, o que mais impressiona é como todo um conjunto de imagens, por vezes quotidianas, se interpenetra com uma reflexão sobre a essencialidade das coisas vividas: "Hoje meditei numa distante falésia / Depois de muito tempo bruma e nuvens retiram-se // Um só caminho: o curso da fria água clara / Ao longe o cimo dos montes verdejantes // Calma a sombra matinal das nuvens brancas / A luz do luar brilhante flutua // No meu corpo não há pó nem sujidade / Porque está meu coração inquieto?" A contemplação do "tempo que passa docemente" aparece, assim, na poesia de Han-Shan, como o fundamento de uma proposta de libertação da materialidade para uma "vida humana" mais espiritual em comunhão com a natureza. E a questão fundamental ficará em aberto: "Quem consegue desligar-se do mundo / E sentar-se comigo no meio de nuvens brancas?"

Escrito para o Canal de Livros.

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